domingo, 31 de março de 2013

Rechuchitou!

José Sócrates rechuchitou!

A primeira pista que Vladimir Offshorev teve de que aquilo ia dar merda foi o nome do governador do banco central de Chipre...

Público: «Cortes nos depósitos em Chipre podem chegar aos 60%»

Governador do banco central: Panicos Demetriades. Ministro das Finanças: Mijalis Sarris

(E abster-me-ei de comentar o nome do ministro das Finanças cipriota...)

Ainda a procissão vai no adro

A caminho dos dois anos de governação, Passos Coelho pode orgulhar-se de uma coisa com crescimento sustentável em Portugal: o desemprego.

Segundo algumas previsões (Jornal de Negócios, 25 de Março), o desemprego em 2013 rondará os 19%. Tenhamos, pois, esperança! Sabendo-o homem persistente e de convicções, estou certo que o nosso primeiro tudo fará para que esta tendência se mantenha.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Tropa

Há pouco mais de vinte anos, estacionado em Elvas, fui mandado com um cabo e dois soldados para o Forte da Graça. O Forte e eu estávamos sob a alçada do Regimento de Infantaria n.º 8 e havia um destacamento em permanência lá em cima. As ordens, se bem as recordo, eram proteger o sítio do assédio dos ciganos, que por compreensíveis razões o achavam perfeito para se instalarem. Corria o Verão e subir ao Monte da Graça era um bónus de ar fresco que se agradecia. Os soldados que me acompanhavam conheciam a rotina e, mal chegados, ao final da tarde, perante a minha mal disfarçada perplexidade, trataram de escolher os melhores colchões, que arrastaram da casa da guarda para o ar livre. A noite ia ser quente e suportava-se lindamente no pátio a seguir à porta de armas. Nenhum deles tinha a menor intenção de fazer uma ronda ao Forte, e eu, pobre e contrariado miliciano, não me imaginava capaz de alterar as tradições do quartel aonde fora parar.
De resto, toda a veleidade castrense que pudesse ter tido quando cheguei a Elvas se esgotara no momento em que, na primeira ronda nocturna enquanto sargento de dia, me deparei com um algarvio em alvos calções e alva camisola de alças a dormitar no seu posto, encostado à G3. Eu tinha acabado de chegar de Mafra, devidamente formatado, e senti um ligeiro escândalo com aquilo. Na Escola Prática de Infantaria — EPI, mais conhecida como “Entrada Para o Inferno” ou “O Calhau”, atendendo a toda a quantidade de pedra que ali se juntou por ordem de D. João V — tínhamos sido ensinados que jamais se pegava numa arma quando em trajes de ginástica (ou de ballet, na delicada gíria militar), pelo que antes de me interrogar por que estava uma sentinela vestida daquela maneira pensei em admoestar o soldado por ter trazido a G3. Na minha hierárquica concepção da etiqueta militar, a combinação dos adereços parecia-me mais importante do que a adequação do traje.
O militar, com sonolência de veterano, ofereceu-me uma passa do seu charro e explicou-me duas coisas, ali no jardim sob o luar e as janelas da messe de oficiais: o calor alentejano não contemporizava com o código de vestuário do Exército e um pescador como ele não estava propriamente desesperado para regressar à faina, aguentava bem os meses extra que, como paga da sua conduta, lhe quisessem oferecer na paz suave das muralhas de Elvas, assegurada que estivesse a comida, a cama lavada e, claro, o comércio com Badajoz.
Na tropa aprendia-se com os mais velhos e, se não passei a fazer as minhas rondas em calção, chinelo e Walter à cinta, foi porque descobri que aquelas horas de serviço se passavam melhor a dormitar no imponente cadeirão de alto espaldar e couro, quase um trono, que havia na casa da guarda. Por outro lado, se não aprendi a apreciar as prorrogações do serviço militar tal como ele se desenrolava em Elvas foi porque era jovem e estúpido e achava que a vida tinha muito mais para me oferecer.

Fim da linhagem

«Ele punha-se a dizer que não havia nada mais lindo do que um cão e esperava que eu me enternecesse como ele se enternecia. Já sabes que eu não suporto animais, dizia-lhe, não lhes quero mal, mas não os suporto. Ele ignorava os meus argumentos e continuava a olhar para onde quer que lhe apetecesse olhar, compondo o seu ar de miúdo sabidolas e independente. Tenho uma solução para ti, respondia, como se eu fosse um problema a precisar de uma solução. Depois, ia-se a ver, e, ainda que ele não pensasse assim, a solução não era para mim mas para o meu problema, porque pesando bem as coisas eu não era um problema, eu tinha um problema. Pomos-lhe uma caixa em cima com um buraco para ele espreitar e já não podes dizer que é um bicho, insistia, passas a ter uma encomenda como mascote. E ria-se. Lá em baixo na rua deslizava uma caixa de papelão levada pelo vento e era aquilo o que lhe dava matéria para discursar. A noite marcava o início do Inverno; o frio, a chuva e o vento tinham finalmente unido esforços para fazer descer a estação à nossa latitude, depois de um Outono seco e com temperaturas altas. A ideia vinha de um filme de que por acaso lhe falei, o meu irmão não tinha imaginação para coisas destas, mas a mim ocorria-me o mesmo ao espreitar o alcatrão molhado, onde a embalagem de um aparelho de televisão fazia o percurso aleatório das últimas folhas das tílias, como se andasse por ali, debaixo da caixa, o agorafóbico cão de The Price of Milk.
Estava disposta a manter-me ofendida, eram as minhas memórias o que ele usava, servia-se dos meus relatos para se fazer interessante e para construir as suas frases insidiosas, as suas metaforazinhas, e com elas causar-me dor. Para tua informação, dizia-lhe, no filme o cão supera a fobia, mas eu não tenciono abandonar esta casa nem por um minuto, e com os braços trémulos de raiva fazia rodar a cadeira para longe da vidraça da sala. Ele fingia-se surpreendido, mas não evitava o sarcasmo, via-se-lhe nos olhos a forma industriosa como tudo, cada palavra, era convertido em farpas, ainda que se forçasse a ser subtil. Não me passava pela cabeça sugerir-te isso, querida, dizia, apenas achei que te seria útil uma companhia. E a mim apetecia-me dizer uma companhia mais assídua, mas continha por segundos a vontade de argumentar, estava já demasiado humilhada para me submeter a estes torneios. Agradeço que te preocupes com a minha solidão, respondia, abertamente irónica, sem afinal resistir ao diálogo, sobretudo aprecio a tua intenção de delegares num cão ou num caixote as obrigações do amor fraternal. Depois arrependia-me de frases destas; eu precisava dele, isso era evidente, mas a mágoa que sentia pedia-me que ocultasse o mais possível as minhas fraquezas. Ele obtinha a sua pequena vitória e sentia-se ainda mais investido na função de tomar decisões por mim, de saber o que era melhor para mim, mesmo que o melhor para mim fossem coisas insuportáveis como ter uma mascote ou uma mulher-a-dias ou uma enfermeira particular. Abominava a intromissão de quem ou o que quer que fosse na minha casa, mas o meu irmão estava disposto a passar por cima de mim para assegurar o meu bem-estar e não se dava conta do paradoxo. Talvez porque não era propriamente em mim que ele pensava, mas na noção de correcção que lhe tinha sido inculcada cedo com um conjunto enorme de princípios de pacotilha. Ter uma irmã, a sua única irmã, o último membro da família, prostrada numa cadeira de rodas era algo que se cravava nas suas entranhas com a força das bestas que ele conhecera em África e que lá caçara com decisão e jactância.
A doença não era para ele um mal que se abatera sobre mim, mas a desculpa que eu procurara toda a vida. Amparava-me por dever familiar e social, mas odiava-me por aceitar a reclusão e uma vida que ele considerava inútil. Às vezes queria que eu ficasse a par de milagres que certas publicações pouco escrupulosas divulgavam, insinuando à sua maneira pretensamente divertida que pela oração é que nos salvamos. Algures na sua mente tradicional residia a ideia de que se eu desejasse suficientemente viver e fosse suficientemente fervorosa nas crenças que ele achava respeitáveis haveria uma altura em que teria acumulado tantas ave-marias e tantos pais-nossos que não me restaria outra hipótese senão levantar-me e caminhar, tal a força da fé e a misericórdia de Deus. Eu insultava a sua personalidade beata e dizia-lhe que a única coisa de que necessitava era que ele se pusesse a milhas, me deixasse tratar da minha vida na minha casa. Como tu quiseres, dizia ele sem na realidade dar importância ao que eu pensava nem se sentir livre de obrigações para comigo, mas na tua condição dispensar a companhia de um cachorro ou de um gato é uma atitude soberba. Eu ficava a pensar na expressão, mas estava cansada de ser racional, já não lhe dizia que ter as pernas paralisadas não era uma sentença, não me obrigava a nada que não quisesse. Dizia vai-te foder, e isto, que não resolvia nada, aliviava-me um pouco, e por isso repetia algumas vezes, vai-te foder, vai-te foder.
Talvez devesse estar agradecida por ter alguém que queria olhar por mim, mas não conseguia sentir as coisas deste modo; para o meu irmão eu era uma parte da herança da família, mais um dos itens do inventário a que era preciso dar atenção, só isso. Não se perdoaria se me acontecesse algo, como não se perdoava quando se quebrava uma das jarras chinesas ou quando uma das propriedades ardia, mas não lhe importava muito a minha opinião sobre o assunto. Pelo meu lado, eu considerava que o que havia para me acontecer tinha acontecido e não tinha a certeza de o lamentar, lamentava-o sem dúvida muito menos do que ele. Quando um dia damos por nós numa cadeira de rodas, o primeiro pensamento é para todas as coisas que vamos deixar de poder fazer, como se antes daquele momento passássemos os dias a querer fazer coisas. Suponho que não escapamos com facilidade à autocomiseração e quando o conseguimos ainda temos de lutar com a comiseração alheia. Se me tivessem amputado as pernas, o meu irmão não teria dúvidas, até para ele seria evidente o carácter inelutável da minha nova condição. Mas as pernas estavam ali, incólumes, e percebo que as pessoas se revoltem contra a inutilidade de membros assim. Eu fi-lo, quando percebi que sem as poder usar ia depender de terceiros para a minha derradeira viagem, aquela que me levaria a casa, ao sítio de onde eu finalmente tinha uma razão para não sair. Passei muito tempo no hospital à espera de um enfermeiro verdadeiramente altruísta que me metesse numa ambulância e me deixasse sem perguntas no elevador do prédio. Tinha a certeza de que faria facilmente a parte final do caminho, no patamar do meu piso. Mas foi o meu irmão quem empurrou a cadeira, cheio de fórmulas de encorajamento e estatísticas sobre a longevidade das pessoas em condições adversas, relatos de triunfo e felicidade. O meu irmão não era o único a confundir esperança de vida com esperança de viver. Eu desistira desta aspiração há muito tempo e não nego que por isso tinha mais facilidade em encarar a paralisia como uma benesse. Infelizmente a minha desculpa era também aquilo que me fazia depender dele. Claro que, pelo meu lado, a dependência seria suportável se ele me tratasse verdadeiramente como uma das cabeças de gado da família, me afagasse regularmente a cabeça e mais não fizesse do que designar alguém para fazer subir até mim as coisas de que eu necessitava e para tratar da limpeza da casa uma vez por semana. Se ele fosse capaz deste tipo de honestidade, a minha docilidade estaria à altura das conveniências. Mas havia o factor humano a contaminar as nossas relações. Ele não conseguia ser um cínico acabado e eu não me livrara de todas as carências, havia ainda espaço em mim para o afecto, vivia um estoicismo inacabado. Quero dizer que ainda amava o meu irmão, quase tanto quanto o odiava.
Sempre que entro aqui, dizia ele, abandonando por momentos a estratégia do humor, sinto uma nostalgia forte, recordo como era regressar a casa nas férias grandes, depois de termos ido para o colégio; os objectos, a disposição dos móveis, quando eu entrava tudo me parecia familiar e novo simultaneamente. E lembro-me que o que me apetecia era passar os dedos pelas coisas, espreitar todos os compartimentos, mesmo antes de abraçar o pai e a mãe. Herdaste dela o bom gosto, o jeito para decorar um lar. Olho à volta e poderia jurar que houve aqui dedo dela, Deus a tenha. Não era verdade, a casa da família era muito mais antiga do que a mãe, e quando ela lá chegou não teve autorização do pai para mexer em nada, para redecorar o que quer que fosse. A memória do meu irmão estava a fazer um trabalho delicado de reconstrução, a sua actual sensibilidade servia o branqueamento do machismo paterno, enraizado no lado masculino da família por séculos de prática empedernida. Nada no meu apartamento lhe permitia lembrar o património familiar, era apenas eu que me parecia fisicamente com a mãe e ele que se sentia perdido sem os pais, os avós, os tios, a pequena multidão que nos acompanhou até à idade adulta. A linhagem tinha chegado ao seu fim connosco e ele não aceitava com facilidade que o último membro do clã, eu, fosse tão voluntariamente anónimo e desinteressado do futuro. Uma casa tem de ter armários e mesas e cadeiras, não?, respondia-lhe com vontade de o desprezar por cada palavra que dizia. Essa é a única semelhança, em casa havia mobília e aqui há mobília, não sei o que mais podes ver de parecido. Nem nós nos parecemos com aquelas duas crianças estúpidas, tu agora com a mesma barriga e a mesma obstinação cega do pai, eu sem a paciência que naquela altura tinha para as vossas ilusões patriarcais. Não, voltava ele, por mais que o negues aqui respira-se o mesmo ar que se respirava lá em casa. Isso é porque de cada vez que expiro me livro de mais um pouco desse tempo de merda, retorquia eu. Podes vir aqui absorver o meu dióxido de carbono todas as vezes que quiseres, com a condição que deixes lá fora os teus projectos para mim. Ele dilatava as narinas ao ouvir-me, inspirava a plenos pulmões como se de facto a atmosfera estivesse impregnada dos aromas da velha casa. Algures no seu cérebro era estabelecida uma ligação e a realidade não o conseguia desmentir. Na verdade, a ligação existia, mas não estava na casa, estava em mim, não só na minha respiração, mas no som da minha voz, nos traços do meu rosto, nos gestos que a cadeira me deixava fazer, na forma como em certos momentos eu o olhava.
Não estranhei quando uma noite me pediu para o deixar subir com uma das suas mulheres e dormir no quarto vago. Aquilo não fora uma necessidade de última hora derivada de uma avaria no carro, era uma ideia fantasiosa que ele não se impediu de pôr em prática. O seu objectivo com as mulheres era a procriação, assegurar a descendência. Teve várias antes de perceber que o problema estava nele, que o seu sémen era inútil. Naquele dia tinha sido emitido o derradeiro boletim clínico e ele tinha-o lido, mas na sua mente tradicionalista e beata havia ainda uma última tentativa a fazer, procurar no domínio do místico aquilo que a ciência lhe negava. Tocou à campainha e conduziu a mulher ao quarto, mas ficou-se a vaguear pela casa antes de lhe ir fazer companhia. Parecia absorto, preocupado com alguma coisa, mas na verdade dedicava-se a uma espécie de ritual, embebia-se da atmosfera, convocava os fantasmas que a minha respiração largava no apartamento. O seu olhar cruzou-se com o meu por várias vezes e em todas ficava latente um pedido, uma súplica que ele não tinha coragem de materializar. Cansada daqueles enigmas e da sua deambulação, fiz rodar a cadeira para o meu quarto e deitei-me. Ouvi-o encostar-se à minha porta antes de avançar finalmente para o quarto que eu lhe emprestara e nesse momento percebi o que pretendia de mim. Mas não estava disposta a alimentar a sua credulidade, a servir de amuleto para aquilo que se propunha. Não seria eu quem abençoaria aquela cópula, mesmo que por absurdo estivesse convencida como ele de que se velasse à cabeceira da cama, em nome de todos os que nos tinham antecedido neste mundo, a mulher debaixo do seu corpo lograria conceber naquela noite.
Havia ainda, talvez, outras razões para aquele seu desejo, mas preferi ficar a ver o dia aparecer na janela e não pensar no assunto.»



Vila Real, Novembro de 2008

quarta-feira, 27 de março de 2013

Ó mãe, o intelectual é mau!

«Há uns ditos intelectuais que acham que só eles é que sabem o que é bom.»
Esta frase de Tony Carreira (mas podia ser de tantos outros, cançonetistas e escritores de sucesso), publicada no sempre prestimoso JN, revela como lá no fundinho a personagem sente mágoa por não ter a admiração dos intelectuais. Um Pavilhão Atlântico cheio de povo ou uma tiragem à Dan Brown podem confortar a alma e alimentar a megalomania, mas não compensam o desprezo dos intelectuais.
É uma conhecida técnica infantil odiar o que não se compreende ou o que não nos satisfaz os caprichos. A criança que se magoa numa esquina, por natureza estática, inerme e sem intenções, reage batendo na esquina e declarando que não gosta da esquina, a esquina é má.
Por vezes, é também um tique de déspota acossado: desejar matar o portador das más notícias, como se isso afastasse as más notícias, as tornasse falsas.

Deve ainda ter-se em conta que o ódio aos intelectuais é a forma que alguns best-sellers encontram para moldar a sua arte ou, mais vulgarmente, para desculpar a sua incapacidade de a tornar melhor.
Ao determinarem que «se inúmeros gostam é bom», estão a autoconvencerem-se que o que fazem é bom. Atribuem à massa que os ama a condição de árbitro da beleza, como Nero fazia a Petrónio enquanto este o bajulava (pronto para o mandar decapitar se fizesse o contrário).
E ao desclassificarem os intelectuais, apondo-lhes aspas ou o prefixo “pseudo” (que usam como insulto), ao dizerem que se os intelectuais não gostam é porque não alcançam a simplicidade da beleza, estão a traçar um caminho que os afasta irremediavelmente da possibilidade de melhorarem o seu próprio trabalho, impõem-se uma bitola superior que juram não ultrapassar.
É verdade que na maioria dos casos não teriam meios para a ultrapassar — e o ódio aos intelectuais é então também a mão com que afagam o rosto, a mão que os conforta na sua impotência. «Ó mãe, o intelectual é mau! Bate no intelectual!»

terça-feira, 26 de março de 2013

Eterno retorno

Pesquisando num dos meus antigos blogues (decesso desde outubro de 2009), encontro um comentário à seguinte notícia do Público de 11/04/2009, meses depois do início da crise financeira em que ainda andamos naufragados:

Pela primeira vez na história, Brasil passa a credor do FMI

“Chique”, “histórico”, “soberano”. Não faltaram adjectivos ao Presidente brasileiro, Lula da Silva, para classificar o empréstimo que o país vai conceder ao Fundo Monetário Internacional (FMI). [...] “Você não acha chique o Brasil emprestar dinheiro para o FMI?”, perguntou a um dos jornalistas presentes na conferência de imprensa. “Eu passei parte da minha juventude a carregar faixas contra o FMI no centro de São Paulo e, agora, serei o primeiro Presidente deste país a emprestar dinheiro à mesma estrutura a quem já devemos muito dinheiro”, enfatizou.

No final desta semana, o Governo brasileiro anunciou que vai disponibilizar 3,4 mil milhões de euros ao FMI, com o objectivo de ajudar países emergentes que enfrentam dificuldades de crédito devido à crise internacional. “Agora estamos a entrar no clube de credores do FMI”, frisou o ministro das Fazenda (Finanças), Guido Mantega.

[...]

Brasil viveu “humilhação”

Depois de décadas a receber visitas de representantes do FMI, o Brasil saldou as dívidas com a estrutura em finais de 2005 [...]. Até essa altura, sublinhou Lula da Silva antes de seguir para a cimeira do G20 em Londres, o país viveu um “inferno”, uma “humilhação”.

“A gente via descendo do avião, no aeroporto, mulheres e homens do FMI dando palpites sobre o que tínhamos de fazer. Aquilo era uma humilhação. Diziam que tínhamos de fazer ajuste fiscal, contenção de gastos... era um inferno”, afirmou.

[...] “Antes da actual crise financeira global, disse o Presidente, o FMI vivia dando palpites sobre as economias do Brasil e de outros países da América do Sul”, assegurou.

Comentava então eu, num post intitulado «Passei metade da vida a lutar contra os “Maus”. Agora sou um dos “Maus”, e sabem que mais? Até que não é mau...» :

Curioso: agora que está no “Clube dos Ricos”, Lula da Silva não explicou se:
  • Estava errado quando lutava contra o FMI;
  • O FMI tinha razão quando pedia o saneamento das contas brasileiras, e isso ajudou a chegar onde estão hoje;
  • A postura do FMI era mesmo errada e ele, agora que tem voto na matéria, vai lutar por um “FMI de rosto humano”;
  • Qual quê! Agora que é credor, vai levar aos outros a «humilhação» que o Brasil sofreu antes, dando-lhes palpites a toda a hora...

O cenário dos homens que descem de aviões com palpites indesejados soa-me bastante familiar, pelo que me inclino para a hipótese de que o FMI pós-contributo brasileiro se regula mais pelo princípio expresso na minha quarta alternativa.

Ou talvez eu esteja a ser injusto. Talvez o Brasil, seguindo a promessa do governo de Lula da Silva, tenha dado o tal “rosto humano” ao FMI — mas apenas, como referia a notícia, relativamente a «países emergentes».

Países imergentes, como Portugal, levam a velha receita.

segunda-feira, 25 de março de 2013

O que é preciso é saudinha (2)

AXIOMA. s. m. Tumor no sovaco. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

(Não) dar a mão à palmatória
(Vítor Gaspar, um caso psicológico — 3)

Leio esta passagem no livro de Daniel Kahneman (p. 289):

Tetlock [psicólogo da Universidade de Pensilvânia] descobriu também que os especialistas resistiam a admitir que tinham errado [nas suas previsões] e, quando eram obrigados a admitir o erro, tinham um largo conjunto de desculpas: apenas haviam errado acerca do momento, tinha surgido um acontecimento imprevisto, ou haviam errado mas pelas razões corretas. [...]

e vem-me à lembrança esta notícia do Público:

Questionado por um jornalista sobre se reconhecia algum erro na forma como o Governo e a troika definiram a estratégia de ajustamento para Portugal e a passaram à prática, Vítor Gaspar não foi capaz de identificar um. [...] Mas se há coisa que é difícil ao olhar para os resultados da sétima avaliação da troika a Portugal, apresentados na sexta-feira [dia 15], é deixar de ver erros, erros de previsão.
[...]
Vítor Gaspar voltou a justificar a deterioração da conjuntura exclusivamente com a redução verificada a partir do final do ano passado na procura externa. [...]

(OK, no caso de Vítor Gaspar, a imaginação só chega para uma desculpa. Mas é-lhe suficiente para dizer que a culpa está toda alhures.)

sábado, 23 de março de 2013

A ilusão de perícia de Vítor Gaspar
(Vítor Gaspar, um caso psicológico — 2)

Há semanas, enquanto almoçava com colegas e comentávamos a política e o estado da economia nacionais, alguém defendeu Vítor Gaspar com o argumento de que ele teria «provas dadas» na área económica, tanto em termos académicos como no “mundo real” da finança empresarial.

Na altura questionei o valor de tais supostas provas, alegando que, pelo menos no caso do meio académico, em áreas “científicas” longe das ciências exactas, a avaliação do mérito é frequentemente inválida, por ideológica: mais vezes do que seria desejável, o avaliador mede, não o valor do trabalho e a validade e verificabilidade das ideias do avaliado, mas o grau de concordância entre as ideias de um e de outro: quem discorda do avaliador não avança na carreira académica; quem lhe diz amém, floresce de viço... (António Borges deu-nos recentemente um exemplo dessa mentalidade.)
Quanto à validade das «provas dadas» no sector privado, uma ideia mais clara da sua questionabilidade surgiria dias depois.

No livro a que já me referi antes, Daniel Kahneman dá um exemplo esclarecedor acerca da mentalidade existente no mundo da alta finança. Em meados da década de oitenta ele e os seus colegas foram convidados por um gestor de topo de Wall Street para uma conversa sobre o papel do enviesamento (preconceitos, ideias feitas, etc.) nas decisões de investimento. Kahneman não percebia nada do ramo, pelo que não estava preparado para o que descobriu (então e desde então) sobre o funcionamento da “indústria financeira” (p. 280):

[...] uma indústria importantíssima parece assentar em grande parte numa ilusão de perícia. [...]

O autor refere, em suporte desta ideia, alguns estudos que demonstram que os supostos especialistas financeiros são tudo menos especialistas ou peritos (p. 282):

Apesar de os profissionais [dos bancos de investimento] serem capazes de extrair um considerável montante de riqueza aos amadores, poucos [...], se houver algum, têm a perícia necessária para vencer o mercado sistematicamente, ano após ano. Os investidores profissionais, incluindo os gestores de fundos, falham num teste básico de perícia: a concretização persistente. O diagnóstico para a existência de qualquer perícia é a consistência das diferenças individuais na concretização. [...]

O que os estudos mostram é que não existe tal consistência: um gestor de um fundo de investimento tem sucesso acima da média num ano, mas abaixo da média logo a seguir. A razão do sucesso, quando ele existe, é fundamentalmente a sorte, não a especial capacidade desse gestor para fazer boas decisões de investimento. No entanto, a ilusão da perícia no mundo financeiro grassa (p. 283):

Há alguns anos, tive uma invulgar oportunidade de examinar de perto a ilusão de perícia financeira. Fora convidado a falar perante um grupo de conselheiros financeiros numa empresa que fornecia aconselhamento financeiro e outros serviços a clientes muito ricos. Pedi alguns dados para preparar a minha apresentação e foi-me confiado um pequeno tesouro: um registo que sintetizava os resultados dos investimentos de cerca de 25 conselheiros financeiros anónimos, para cada um de oito anos consecutivos. A pontuação de cada conselheiro [em termos de sucesso dos seus conselhos de investimento] era o principal determinante para o seu prémio do final de cada ano. [...]

Kahneman calculou o coeficiente de correlação entre as pontuações de cada conselheiro em diferentes anos, em busca da alegada perícia que a empresa premiava anualmente (p. 284):

[...] estava preparado para encontrar uma fraca evidência de persistência de perícia. Mesmo assim, fiquei surpreendido ao verificar que a média das 28 correlações era 0,01. Por outras palavras, [na prática,] zero. As correlações consistentes que indicariam diferenças em termos de perícia não existiam em lado nenhum. Os resultados pareciam-se com aquilo que se esperaria de uma competição de lançamento de dados, não de um jogo de perícia.
Ninguém na empresa parecia estar consciente da natureza do jogo que os seus selecionadores de ações andavam a jogar. Os próprios conselheiros sentiam ser profissionais competentes a realizar um trabalho sério e os seus superiores concordavam. [...]
A nossa mensagem para os executivos foi a de que, pelo menos no que dizia respeito a construir portefólios, a empresa estava a premiar a sorte como se fosse perícia. Isto deveria constituir uma notícia chocante para eles, mas não. Não havia qualquer sinal de que não acreditassem em nós. [No entanto,] não tenho qualquer dúvida de que ambas as nossas descobertas e as suas implicações depressa foram varridas para debaixo do tapete e que a vida na empresa prosseguiu como até aí. A ilusão de perícia não é apenas uma aberração individual; está profundamente impregnada na cultura da indústria [financeira]. [...]

Como conclui Daniel Kahneman (p. 286), as supostas «provas dadas» na área financeira sofrem do facto de serem avaliadas segundo princípios enviesados, ignorando os factos:

[...] as ilusões de validade e perícia são apoiadas por uma poderosa cultura profissional. Sabemos que as pessoas conseguem manter uma fé inabalável em qualquer proposição, por muito absurda que seja, quando é defendida por uma comunidade de crentes que pensam de igual modo. [...]

O recurso a terminologia da área religiosa não é casual: como eu já disse antes, a política económica de Vítor Gaspar (cujos pergaminhos foram obtidos com a seriedade relatada atrás) e do seu governo é determinada por dogmas, por “artigos de fé” que não passam na análise racional dos factos — mas que mesmo assim, teimosamente, subsistem. Amém.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Passarões

No supermercado onde me aprovisiono de atum, salsichas, sardinhas e demais enlatados de guerra entram por vezes pássaros que passam a noite a chilrear em busca da saída. Mas não são eles que depenicam os cachos de uvas que ali se vendem. Quando decido comprar fruta desta, tento acreditar que os bagos em falta foram retirados por diligentes funcionários à cata de uvas apodrecidas (ou, pronto, vá lá, bicadas pelos pássaros). Mas não se é misantropo por razão nenhuma: acabo sempre a desconfiar que quem depena os cachos é a restante clientela, que acredita ser Democracia o estender as patorras e tirar um bago ou dois ao passar e Liberdade o abrir um iogurte para confirmar se é aquela a escolha acertada. Uma clientela ciosa dos seus direitos, que responde a quem olha estupefactamente para a embalagem aberta e devolvida à prateleira vociferando com ar de escândalo: «Que foi? Meta-se na sua vida!»
Suponho que a cadeia de supermercados terá uma verba para cobrir este exercício de cidadania dos seus clientes. Do mesmo modo que tem uma verba para processar os tipos de casta inferior que por vezes roubam um euro ou dois de hortaliça.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Dia Mundial da Poesia

CRESCER. Em toda a sua vida leu um só poema. De cada vez que o relia, em vez de mudar de página, mudava ele.

Também tu?

Houve um tempo em que a revolução me parecia acessível. Eram os anos oitenta e a professora de inglês dava-se ao trabalho de arranjar um leitor de cassetes para passar A sort of homecoming dos U2 e falar da poesia. Mais tarde nesse dia ou no fim-de-semana seguinte o DJ (era o tempo em que havia mesmo DJs nas discotecas) propunha Sunday, Bloody Sunday e não era improvável que a rádio passasse entretanto Pride (In the name of love) ou New Years Day, The Electric Co., Running to stand still. Tudo isto nas versões ao vivo, claro, a electricidade era realmente importante e despertava o epiléptico que há em mim. Depois disso a professora de inglês entrou num imerecido esquecimento, o Bono deixou de ser um rufia de Temple Bar e eu digo burguesamente que sim, li Dubliners — sem recordar uma única história.
Imaginemos agora por um momento que os quatro de Dublin não tinham as poupançazitas em offshores e se viam obrigados pela crise a fazer de novo boa música: talvez eu pudesse voltar a conspirar com eles para derrubar o governo. Nada era impossível para um proletário simplório durante os três minutos de uma música e os trinta e três centilitros de uma Super Bock.

Mantra

O ministro espanhol da economia diz que os depósitos dos espanhóis «são sagrados». Vítor Gaspar afirma que uma taxa sobre os depósitos «está totalmente fora de questão». Não somos a Grécia. Não somos o Chipre. Até à derrota final.

quarta-feira, 20 de março de 2013

A ilusão de validade das ideias de Vítor Gaspar
(Vítor Gaspar, um caso psicológico — 1)

Em Pensar, Depressa e Devagar, Daniel Kahneman, o psicólogo laureado com o Prémio Nobel da Economia a que me referi noutro post, descreve (pp. 278–279) a sua experiência como recém-licenciado no Exército de Israel, onde tinha como incumbência avaliar psicologicamente os recrutas com vista a decidir quais tinham o perfil de liderança que os tornava aptos para a escola de oficiais. Vítor Gaspar diria que os resultados de Kahneman e a sua equipa eram «um desapontamento»:

A evidência de que não conseguiríamos prever o sucesso [dos cadetes] com exatidão era esmagadora. [...] A história era sempre a mesma: a nossa capacidade de prever o desempenho na escola era negligenciável. As nossas previsões eram melhores do que apostas ao calhas, mas pouco melhores.
Ficávamos abatidos durante algum tempo, depois de recebermos as desencorajantes novidades [das notas realmente obtidas pelos candidatos após meses de formação para oficiais]. [...]

Mas o pior não era o baixo poder de previsão de Kahneman e dos seus colegas — era a sua inabalável persistência no erro:

[...] Mas era o exército. Úteis ou não, havia uma rotina a ser seguida e ordens para cumprir. [...] A frustrante verdade acerca da qualidade das nossas previsões não tinha qualquer efeito sobre a forma como avaliávamos candidatos [posteriores] e muito pouco efeito na confiança que sentíamos nos nossos juízos e previsões sobre os indivíduos.
O que acontecia era notável. A evidência global dos nossos fracassos prévios deveria ter abalado a nossa confiança nos nossos juízos sobre os candidatos, mas isso não aconteceu. Deveria ter-nos levado a moderar as nossas previsões, mas isso não aconteceu. Sabíamos, em termos gerais, que as nossas previsões eram pouco melhores do que palpites aleatórios, mas continuávamos a sentir e a agir como se cada uma das nossas previsões fosse válida. [...] cunhei um termo para a nossa experiência: a ilusão da validade.
Descobrira a minha primeira ilusão cognitiva.

Mutatis mutandis, temos o diagnóstico de Vítor Gaspar feito.

Banha-da-cobra

Se um amigo nos diz que há oportunidades na adversidade, está a tentar animar-nos. Mesmo que nos minta (e, estatisticamente, mente-nos), sabemos que a mentira é piedosa, bem-intencionada. Agradecemos-lhe e, havendo forças, assobiamos de bom grado com ele Always look at the bright side of life.
Se um tipo como Passos Coelho não se cansa de nos repetir esse mantra de cada vez que nos dá más notícias, não devemos cair na confusão de o tomar por amigo. Há outra espécie de pessoas que se esforça por revelar o lado bom das coisas, mesmo quando elas o não têm. Sobretudo quando elas o não têm. São os charlatães.

Nunca compre um carro em segunda mão a Passos Coelho — descobrirá que não tem motor, embora o chassis seja alemão.

Euro Visão: a cegueira ideológica

Ainda a propósito da cegueira ideológica dos governantes e decisores económicos (a que voltarei em breve):

Euro Visão (jogando à cabra cega): Christine Lagarde, Angela Merkel, David Cameron, líderes da Holanda, Espanha, Itália, Grécia...
Cartoon de Christian Adams, The Telegraph (2012)

Adágio popular

A direita não suporta a classe média, a insolente ambição da classe média. Por isso a direita é geralmente tão amiga do povo — do povo tal como ele se vê em estampas antigas a sépia. Se um destes partidos de direita se propõe ajudá-lo, tome cautelas. Caso não esteja num casting para séries televisivas do género “Conta-me como foi”, o mais certo é que o queiram tornar figurante do reality show com o mesmo nome.

Tempestade sem bonança

O Professor Zandinga, magoado com as comparações, acha que Vítor Gaspar não passa de um simples meteorologista, e sugere que o recambiemos para o respectivo Instituto. A Nação discorda. Gaspar nas vezes de Anthímio de Azevedo, mais do que falhar as previsões, haveria de trazer sempre mau tempo.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Confusões

Há alturas em que decidimos ver a alegada grandeza de um desafio na quantidade de tempo que perdemos a antecipá-lo. Depois de ultrapassada a experiência, de revogados os escolhos, e se a sensatez ainda fizer parte do que somos, percebemos que, afinal, não existia «grandeza» alguma e que na circunstância a que chamávamos «desafio» projectáramos unicamente o medo do desconhecido ou o desejo de extinguir o tédio que nos invadira o corpo em momentos de nula exaltação.

«É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Uma das mais fascinantes características do ministro Vítor Gaspar (que chegou ao Governo com aura de génio da Economia e currículo com supostas «provas dadas») é a sua imorredoura capacidade para se surpreender com o andar da... Economia.

O Governo corta os salários do funcionários públicos, aumenta os impostos para todos e diminui a segurança no trabalho facilitando os despedimentos. Quando, perante a menor disponibilidade financeira e as perspectivas negras para o futuro, os portugueses se precavêem retraindo ainda mais o consumo e a economia cai mais rapidamente... Vítor Gaspar fica surpreendido.
(A 13 de setembro último, em entrevista à RTP, Pedro Passos Coelho, que antes dissera que os portugueses viviam acima das suas possibilidades, justificou o acentuar da retracção económica pondo a culpa nos portugueses, que teriam consumido menos do que podiam...)

Quando a quebra do consumo leva ao aumento do desemprego (consequência natural num tecido empresarial que depende esmagadoramente do consumo interno)... Vítor Gaspar fica desapontado.

Foi assim que, ainda antes de muitos destes episódios caricatos da política portuguesa ocorrerem, me convenci que o alegado «génio» da Economia não percebe nada de Economia (real). A propósito disso, escrevi no Facebook, a 10 de setembro de 2012, o post que a seguir reproduzo.

«É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Dogbert agita varinha máica e diz. «Fora! Fora!! Seus demónios da estupidez!!»

Dogbert, de Scott Adams


Daniel Kahneman e Amos Tversky (dois psicólogos) mostraram em 1979 que, ao contrário das teorias económicas vigentes (em grande medida, ainda agora), os sacrossantos Mercados não são racionais.

A teoria foi recebida com escândalo e cepticismo pelos previsíveis guardiães da ortodoxia económica: com fervor, agarraram-se ao dogma e, benzendo-se, maldisseram os ímpios incréus que ousavam entrar no recinto sagrado do Templo e denunciar os seus ídolos de caco e as suas burlas sibilinas.

Às objecções do Sinédrio e da Cúria da Economia, Kahneman retorquiu com ironia: «É preciso ter estudado Economia muitos anos para não perceber isto...»

Para nossa desgraça, a boutade de Kahneman aplica-se, não apenas à teoria económica da racionalidade dos Mercados, mas à generalidade da política económica adoptada em Portugal e por muito desse mundo...


Nota: Daniel Kahneman viria a ganhar o Prémio Nobel da Economia em 2002 (Tversky já tinha morrido, não sendo por isso nobelizável).

domingo, 17 de março de 2013

Da tosse

Escreve Alexandre O'Neill, em lúgubre soneto: «Se não fui eu quem veio no jornal, foi uma tosse a menos na cidade.» (1) Frequentemente, pode banir-se a tosse mediante a aplicação de técnicas de controlo respiratório. Após exercícios do género, não só impeço a maçada de tossir como alimento a crença de ter absoluto domínio sobre o corpo. Em simultâneo, granjeio a ilusão de ser possível livrar a morte do fiel incómodo de suprimir, um dia, a minha tosse.


(1) Alexandre O’Neill (2000), Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 162.

No final de contas...
(contextualização)

Os leitores mais atentos e informados poderão ter detectado algo de estranho no post do Paulo: como é que Pedro Passos Coelho, que apenas se licenciou em 2001 (com 37 anos), em Economia, pode ter sido professor de Matemática do 9.º ano numa altura em que teria uns 19 anos?!

Os ainda mais informados (nomeadamente os que viveram esse anos do início da década de 1980) saberão a resposta. Para os outros (mais novos ou mais esquecidos), fica aqui a contextualização.

Até ao 25 de Abril a educação após a 4.ª Classe (actual 1.º Ciclo) era só para alguns, poucos. Com a Revolução dos Cravos deu-se a democratização do ensino: quase de um dia para o outro, as escolas foram inundadas por um súbito influxo de novos alunos. Portugal não estava preparado para tal: simplesmente não havia suficientes professores qualificados para tanto aluno (em especial no interior do país).

Ora, quem não tem cão, caça com gato: quem não tem professores qualificados, recorre a cidadãos desqualificados. (Já estão a ver como isto vai dar a Pedro Passos Coelho, certo?)


Com a classe política passou-se um pouco ao contrário. Após o 25 de Abril havia uma classe política qualificada, concordasse-se ou não com as suas ideias: de políticos da ala “liberal” do antigo regime (por ex., Francisco Sá Carneiro), passando por advogados com actividade de defesa dos presos políticos (por ex., Jorge Sampaio), até políticos com passado de actividade clandestina anti-regime (por ex., Mário Soares e Álvaro Cunhal).

Enquanto as décadas de 1980 e 1990 foram de intensa formação de novos professores, devidamente qualificados, que foram substituir os desqualificados do início do ensino democratizado, no campo da política esse mesmo período caracterizou-se pelo envelhecimento e gradual afastamento da classe política do 25 de Abril. Entretanto, na forja das “Jotas”, (de)formava-se a classe que iria substituir os pioneiros.

Chegados ao fim do século XX e início do actual, os nossos governantes mudaram de perfil: em vez dos advogados, sociólogos, engenheiros com experiência de luta pela democracia, lidera-nos uma cáfila de desqualificados, cuja única real experiência de vida é a obtida nas «academias da politiquice prática» que frequentaram na juventude, com posterior especialização em tachos conseguidos por favor político. (Quase todos têm, no papel, um grau académico, mas pelo menos para alguns, como sabemos, também isso fez parte dos favores políticos recebidos.)


Eis, pois, como Pedro Passos Coelho conseguiu o feito raro (esperemos...) de, em alturas diferentes da sua vida, exercer desqualificadamente duas funções públicas: no Ensino e na Política. Para mal dos nossos remédios.

Em defesa da honra do Excel

O problema não é o Excel, Rui — é o que se faz com ele.

Vítor Gaspar apresenta muita da sintomatologia que já detectei em variadas outras pessoas, geralmente pequenos e ineptos comerciantes.
(A diferença, bem grande, está na etiologia do problema em cada caso: cegueira ideológica no caso de Vítor Gaspar, pura ignorância no caso dos referidos comerciantes.)

Chamo a esse problema (de uns e de outros) a «Falácia da Contabilidade Simplificada».
Em que consiste esta falácia? Em contabilizar apenas os efeitos positivos das nossas medidas, ignorando descaradamente os seus efeitos negativos, que por vezes são superiores aos positivos.

No caso dos pequenos comerciantes (por ex., donos de restaurantes), conheço vários que levaram em linha de conta apenas a redução da despesa (conseguida à custa da diminuição do pessoal e da aquisição de produtos de gama mais baixa), desprezando os seus efeitos nas receitas (diminuição do número de clientes devido à degradação da qualidade do serviço).
Resultado: desastre para a saúde do negócio desses comerciantes.

No caso do nosso alienado Ditador das Finanças, Vítor Gaspar olha apenas para os valores dos salários (que reduziu) e para as taxas aplicáveis nos impostos (que aumentou), ignorando que estes incidirão sobre um valor total (facturação) menor, devido à quebra da actividade económica.
Resultado: desastre... para Portugal. (Vítor Gaspar lá terá a sua “almofada” financeira pessoal assegurada.)

O bug das finanças

Se, como parece, a política do governo assenta numas páginas de Excel, teremos de concluir, tendo em conta a forma como as suas contas falham, que não temos um ministro nas finanças — temos um dos famosos bugs da Microsoft.

Desapontamento

O ministro das finanças está desapontado. E o caso não é para menos: que desfaçatez intolerável este comportamento das coisas reais face à irrepreensível acomodação das células de Excel!

Perante os sentimentos exacerbados dos portugueses (frustração, depressão, angústia, inquietação, raiva, desespero) o nosso ministro das finanças não sente mais do que um desapontamento. Já sabíamos que era suspeita aquela maneira de falar (e de pensar), mas agora temos a certeza de que Gaspar é, ele próprio, um simples conjunto de zeros e uns, um aglomerado de bytes que fazem um belo holograma de testa enrugada.

No final de contas...

No 9.º ano, Pedro Passos Coelho foi o meu professor na disciplina de matemática — sim, é verdade. No final daquele ano lectivo deu-me uma rotunda negativa. Hoje compreendo como tal infâmia aconteceu. O agora primeiro-ministro não percebe nada de matemática.

Há muitas formas de estar errado

André Macedo, no seu editorial do Dinheiro Vivo de 16 de março, fala do perigo de o radicalismo económico de Vítor Gaspar levar, por reacção, as pessoas a rejeitarem «as economias liberais, a concorrência, o capitalismo, até as instituições democráticas».

Esse perigo é real, pois as pessoas têm a tendência de ver dicotomias em tudo: se uma ideia é errada, uma outra ideia que se lhe oponha será necessariamente certa.
Pude verificar (sem surpresa) essa tendência para a ultrassimplificação das questões na semana que antecedeu a grande manifestação de 15 de setembro: no Facebook defrontavam-se, por vezes com grande violência verbal, dois campos antagónicos, não raro constituídos por “amigos”. Uns, que com enorme facilidade passavam da oposição ao Governo e à Troika para a apologia da Cuba castrista e outros comunisms serôdios. Outros, que vendo comunistas e anarquistas em tudo quanto era canto (mesmo que tal visão fosse muitíssimo redutora e por isso injusta), fincavam pé quais irredutíveis gauleses, repetindo o mantra de apoio a Gaspar mais para se convencerem a si próprios do que à sua audiência; uma táctica alternativa era a de desviar as atenções dos erros presentes, berrando bem alto a denúncia dos erros passados.

A propósito deste triste espectáculo, escrevi no Facebook a 14 de setembro de 2012 o post que a seguir reproduzo.

Há muitas formas de estar errado

Um artigo no Público espanhol diz que a crise deu força a quem rejeita o Capitalismo. Será verdade, mas é um erro.

PPP's dos últimos Governos: Cavaco Silva 2, Guterres 30, Durão Barroso + Santana Lopes 6, Sócrates 50

Um amigo meu aqui no Facebook, de Direita, posta uma imagem que compara o número de Parcerias Público-Privadas celebradas nos governos PSD (Cavaco Silva, Durão Barroso/Santana Lopes) e PS (Guterres, Sócrates): sendo os números correctos (não sei), o regabofe foi uma ordem de grandeza (i.e., 10x) superior durante os governos do PS. Ainda que o gráfico seja verdadeiro, a extrapolação (implícita) do meu amigo está errada.

O mundo é mais complexo do que, à esquerda e à direita, alguns nos querem convencer. A ideologia e a prática política e económica não são dicotómicas, não são binárias. Se uma está errada, a outra não está consequentemente certa.
Há muitas maneiras de estar errado.

Não foi por combater Hitler que Estaline estava certo, nem foi por Estaline estar errado que Hitler estava certo. Estavam ambos errados e ambos estão no top dos Criminosos contra a Humanidade.

Não é por o sistema soviético ter colapsado sob o peso dos seus próprios princípios errados que as variedades selvagens de capitalismo são aceitáveis. E não é por existir capitalismo selvagem, exploração e cegueira ideológica à Direita que o regime soviético, o marxismo-leninismo ou a Ditadura do Proletariado devem ser reabilitados da fossa séptica da História, como se à Esquerda não tivesse havido também a sua enorme dose de selvajaria (colectivista), opressão e cegueira ideológica de sinal contrário.
Há muitas maneiras de estar errado.

De igual forma, não é por os Governos PS terem sido despesistas e dominados por golpistas, ladrões e gajos de “esquemas” que o actual Governo do PSD está livre do mesmo mal ou está certo na (der)rota que está a desenhar para Portugal.
Há muitas maneiras de estar errado.

As práticas económicas dos bancos de “investimento” que vivem da especulação e do ataque cerrado às economias frágeis e expostas, na mira exclusiva do lucro a (literalmente) qualquer custo (para os outros, isto é, nós), estas práticas não são “O Capitalismo”. São apenas uma forma perniciosa e infestante de prática capitalista. Metê-la no mesmo saco de outras práticas de capitalismo, pretendendo que todo o capitalismo é selvagem e esquecendo o desenvolvimento que ele trouxe, resulta no mesmo erro ou falácia de meter no mesmo saco a Marcha da Morte imposta aos seus prisioneiros pelos japoneses, a prova atética radical da Ultra-Maratona ou uma peregrinação a pé pelo Caminho de Santiago...

Sou pelo Capitalismo — mas não este, ruinoso.

sábado, 16 de março de 2013

O sentido

Declarou Vergílio Ferreira: «O ponto mais alto da sabedoria é ver que nada no Universo faz sentido. E que esse não-sentido tem o sentido de o não ter como se o tivesse...» (1) A afirmação, rebuscada, abre a porta à crítica e a janela ao devaneio: «O ponto mais alto da sabedoria é ver que tudo no Universo faz sentido. E que tal sentido não tem o sentido de o ter, e até seria irrelevante se o tivesse...»


(1) Vergílio Ferreira (1993), Pensar, 4.ª ed., Lisboa, Bertrand Editora, p. 52.

A cegueira ideológica

[Republicação de um post meu no Facebook, datado de 9 de setembro de 2012.]

A cegueira ideológica


cegos guiando cegos

Pieter Brueghel, the Elder (1525/30–1569):
«The Parable of the Blind Leading the Blind»


Anteontem [7 de setembro] perguntei-me se a adopção de tais medidas de austeridade*, tão clara e obviamente erradas, era sinal de ignorância do Governo (do nosso Primeiro e do seu adjunto, sem dúvida — mas a mesma desculpa não é aceitável nos ministros das Finanças e da Economia...), se sinal de que os membros do Governo e quem os assessora querem é «a porra deles direita», estando-se nas tintas para o país e a generalidade dos seus cidadãos.

Ontem cheguei à conclusão de que, verificando-se sem dúvida em parte as duas possibilidades anteriores (ignorância e interesses pessoais), há um terceiro factor a considerar, por ventura (ia dizer «por certo») mais importante: a cegueira ideológica.

O Governo do PSD (e o de Merkel, e muita gente em Washington, com particular ênfase para os Republicanos) fez o que fez, não apenas por ignorância (que, sem dúvida, grassa), nem apenas porque a sua verdadeira preocupação são os interesses dos seus verdadeiros patrões (as grandes empresas para onde irão quando deixarem o Governo), o que também é um facto a considerar — mas porque a sua ideologia (limitada e simplista) lhes diz que é assim que as coisas se fazem, e não interessa que a realidade contradiga os “artigos de fé” da ideologia: os dogmas são intocáveis.

A cegueira ideológica conduziu o bloco soviético à ruína: o sistema económico marxista-leninista não funcionava, mas insistiram no erro do dogma. A Direita empenha-se agora em mostrar-nos que também consegue avançar intrepidamente sob o efeito de cegueira semelhante: tal como os soviéticos à esquerda, a Direita actual conduzir-nos-á ao arrepio da realidade, até cairmos pelo precipício económico-social. Que caiamos pela direita do precipício e não pela esquerda, pouco interessa. Cairemos na mesma, a queda acelerada por levarmos atada ao pescoço a bigorna do dogma (a que eles, na sua cegueira, chamam «pára-quedas»).


Inspirado por este longo, mas interessantíssimo, artigo: «Bill Black: New York Times Reporters Need to Read Krugman’s Columns» (em inglês).


P.S. O editorial de hoje (16 de março) de André Macedo (Dinheiro Vivo) arrasa as políticas económicas deste Governo, «o falhanço estrondoso de Gaspar». No ponto 4, Macedo refere-se precisamente à «cegueira ideológica» subjacente. Recomendo vivamente todo o artigo.


* As propostas de alteração à TSU, medida abandonada após a oposição popular manifestada a 15 de setembro.

O Alienado

O dobro da austeridade resultou em quase o dobro dos défices previstos

Questionado por um jornalista sobre se reconhecia algum erro na forma como o Governo e a troika definiram a estratégia de ajustamento para Portugal e a passaram à prática, Vítor Gaspar não foi capaz de identificar um. Preferiu falar antes de um "grande desapontamento" [...]

Cavaco Silva, no tempo em que não era um mero biblô do Palácio de Belém, afirmava nunca se enganar e raramente ter dúvidas. (Actualmente, acredito que continue a pensá-lo, mas falta-lhe o desplante para dizê-lo.)

Vítor Gaspar, o Ditador das Finanças, também não consegue encontrar erros na sua acção: as suas políticas económicas são perfeitas — os portugueses, o mundo, a Realidade é que não se comportam como deve ser! Eis a origem do «grande desapontamento».


P.S. Neste e nos próximos dias republicarei aqui posts sobre política económica, escritos por mim no Facebook entre Setembro de 2012 (no rescaldo do plano governamental de alterações à TSU) e a criação do Iniciação ao Tédio.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Os veículos do Parnaso

Condutores que apreciassem versos podiam alugar «veículos do Parnaso». Tratava-se de carros que seguiam à frente e cuja retaguarda exibia um ecrã onde surgiam estrofes ajustadas à preferência de quem solicitara o serviço. Em tal circunstância, a velocidade máxima permitida era menor que a expressa na lei geral, pelo que o exercício ajudava a reduzir os índices de sinistralidade. Verificavam-se excepções quando o leitor, ao volante, confundindo o literal e o metafórico, resolvia entrar dentro do poema.

O Escritor
(conto de microcontos)

(Resgatado do baú da memória pela leitura do post “Necessidade e contingência”, do José Ferreira Borges.)

1

Queria ser escritor.
Não tinha disciplina nem profundidade para o romance. Não tinha objectividade para a novela. Não tinha relevância para o conto. Não tinha poder de síntese para o microconto. Fora isso, não lhe faltava nada.
Nem sequer o Moleskine.


2

Queria ser escritor. Desse por onde desse, seria escritor.
Tentara o romance, tentara o conto — nunca acabara nada.
Tentara, em desespero de causa, o microconto — nenhuma ideia surgira.
Um dia, uma súbita inspiração: abriu o Moleskine e, de rajada, escreveu um ponto final.


3

A publicação de “.” apanhou a cena literária e o mercado livreiro de surpresa.
Em pouco tempo a sua obra inaugural arrebatava os tops de vendas. No final do ano a crítica foi unânime em elegê-lo como escritor-revelação. Era a nova coqueluche literária: não havia epígrafe em que não figurasse, não havia curso de escrita criativa que não o glosasse, nem dissertação de mestrado ou tese de doutoramento que não o citasse.
Era também terrivelmente plagiado. Mas aprendeu, estoicamente, a resignar-se.


4

À surpresa seguiu-se a certeza: contra todos os medos e maus agoiros, as obras seguintes confirmaram o fulgor e a frescura do Escritor. E não só como ficcionista, mas também nas vertentes de investigador e pensador crítico do nosso mundo: da sátira (“þ”) à Economia (“$”, “£”, “€”, “¥”...), passando pela Matemática (destaque para a diversas vezes reimpressa trilogia “>”, “<” e “=”), o seu contributo foi tudo menos irrelevante.
De facto, a sua primeira incursão pelo ensaio — “?” — tornou-se rapidamente leitura obrigatória nos mais prestigiados cursos de Filosofia (sucesso que se estenderia ao mundo hispano-falante depois da publicação de “¿?”, edição «revista e aumentada» cuja responsabilidade de tradução para o castelhano o Escritor chamou inteiramente a si). Anos depois, por pressão de alunos que se queixavam da exigência de tal obra de leitura integral, alguns cursos — à semelhança, de resto, do que já se passava em todas as faculdades de Teologia — adoptariam o menos inquisitivo e mais assertivo “.” (não confundir com a obra de ficção homónima, do mesmo autor). E, num exercício próximo da heteronímia, ou sinal de obsessão pelo contraditório, publicaria quase em simultâneo, sob nome suposto, “;”, uma refutação implacavelmente sardónica de “.” (referimo-nos ao ensaio, naturalmente).


5

Já num campo mais marginal, foi internacionalmente aclamado como «ground-breaking» o psicadélico “Ctrl+Alt”, também descrito como «o único digno sucessor de “The Doors of Perception”».
E, claro, como esquecer “æ” e “œ” («duas obras-primas da literatura erótica», chamaram-lhes), ou os muito mais polémicos “§” e “¶” (cuja temática homo-erótica ditou a sua remoção de muitos escaparates)?
Só não vingou na poesia. O manuscrito de “!” foi considerado «de um débil e inflacionado “sentimentalismo” poético» pelo único editor que contactou; o balde de água fria retirou-lhe o ânimo para novas tentativas.


6

Radicalmente anti-elitista, não desprezou os ditos “géneros menores”.
Foi com total desassombro que trouxe à luz do dia “—”, livro de auto-ajuda (subcategoria, autoconhecimento) que, à venda em todas as estações dos Correios, pôs meio país a falar com o seu Eu interior. (Pela mesma editora, o manual de yoga “&” foi apenas um sucesso relativo.)


7

Um dia atribuíram-lhe o Prémio Nobel. Polida mas irredutivelmente, recusou: as solicitações sociais de um laureado eram «too time-demanding».
E o que ele queria mesmo era escrever.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Necessidade e contingência

Quem redija movido por força oculta, dessas que empurram a mente e dirigem a mão, pode esperar transmitir coisas belas, certas, relevantes, mais do que se contasse apenas consigo próprio. Do primeiro exercício brota aquilo a que chamaremos «a escrita necessária». Do segundo, «a escrita contingente». Se bem mo elucida a intuição, este texto é exemplo rematado de escrita contingente. Por isso, não sobrará grande espanto se resultar duvidoso o que aí se diz da escrita necessária.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O bolso

Era uma vez um bolso que se limitava a existir. Nunca pertencera a qualquer peça de vestuário e jamais sentira necessidade de se considerar uma. Contivera já inúmeros objectos e ideias fecundas, mas preferia que o deixassem vazio e em paz. Reduzia ao mínimo os seus gestos intencionais, acreditando que o vento e outras forças o guiariam sempre com acerto. Quando lhe perguntavam se algum dia albergara o segredo da vida, respondia apenas: «Eu sou um bolso.»

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terça-feira, 12 de março de 2013

Janela indiscreta

Tenho uma tendência para humanizar coisas e bichos. Até pessoas, por vezes.
Hoje pousou-me uma pomba no peitoril da janela e, como eu tinha acabado de sair do duche, suspeitei que o fez intencionalmente. Imaginei-a, lúbrica, a espreitar-me enquanto me vestia. Ao dar com ela, encolhi a barriga e tentei mexer-me pouco — mas ela resistiu, não se mandou contra o vidro na ânsia de entrar. Também não se mandou abaixo do parapeito, o que me confortou o ego, antes um pouco melindrado com a sua resistência.
De seguida estiquei-me cuidadosamente para apanhar o cinto e ela abriu as asas e lançou-se atabalhoadamente nos céus. Ainda considerei aquilo muito humano, mas de uma humanidade diferente: de criança antiga, traumatizada com sovas paternas pré-revolução. Ou de jovem mulher que não lê As 50 Sombras de Gray e desdenha por isso os prazeres sado-masoch.
Devia ter considerado não usar cinto hoje.

Privilégios

Atingir uma verdade pela qual se justifique viver continuamente entusiasmado, imune ao tédio e a outras perversões, é um privilégio concedido a poucos. Verosímil se afigura que tais seres, no pico do seu existencial arrebatamento, desfrutem de instantes de felicidade tão altos e preciosos que sintam ganas de abraçar, uma a uma, as suas próprias células. Dir-se-á que, tarde ou cedo, ilusórios se hão-de revelar os frutos. Mas a essa nefasta conclusão só chega o amargurado pensamento.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Ultra-secreto

Por bons intérpretes que sejamos dos sonhos, ou por muito que o julguemos ser outrem, chega sempre o dia em que achamos as alegadas imagens do inconsciente um desconchavo absoluto para o que pensamos das nossas vidas. Mas é então que aceitamos existir, além dos níveis sucessivos do eu — do público ao privado, do íntimo ao clandestino —, uma dimensão ultra-secreta, inacessível, capaz de transformar as palavras que nos procuram dar a conhecer num digno amontoado de falácias.

O contributo da Lei de Lynch para a redução do défice

«É assim tão difícil pôr desempregados a limpar as matas?», pergunta João Salgueiro, membro do Conselho Económico e Social, ex-ministro das Finanças, ex-vice-governador do Banco de Portugal, ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos e da Associação Portuguesa de Bancos.
Se quisermos estar suficientemente fodidos com os tipos que têm disposto do país nos últimos vinte ou trinta anos, podemos decidir encontrar um certo tom nazi na pergunta. Como se ouvíssemos uma das questões burocráticas que Himmler punha a Rudolf Hoess.
Claro que o economista na mesma passagem invoca Keynes e isso é suposto ilibá-lo de qualquer deriva neoliberalista. Sabemos que é melhor ter a classe média ocupada do que a remoer insatisfações, mas duvido que obrigar desempregados a limpar matas caiba no conceito de apaziguamento social.
É possível que estejamos no limiar de uma situação como a que se viveu no pós-guerra, onde a civilização se suspende e as pessoas lutam para sobreviver, regressa a agricultura de subsistência, quem sabe se a velha condição de caçador-recolector. Posto perante essa circunstância, o povo agirá naturalmente em conformidade, não precisará de velhos senadores a indicar-lhe o caminho: tem todo um genoma a exigir-lhe que sobreviva.
Há na ligeireza com que os poderosos se referem aos desempregados, ao cidadão comum, uma ressonância inadequada de nobreza velha ou velha aristocracia. Inadequada, entre outras razões, porque do outro lado do espectro não está uma massa bruta, medieval, sem educação nem anseios ou ambições, resignada à miséria e à inferioridade desde o nascimento. Os tipos que, na sua patética sobranceria, se dispõem a falar de milhões de pessoas como se falassem de crianças irresponsáveis ou de velhos servos da gleba deviam, em primeiro lugar, questionar-se se a sua carreira, o seu trabalho, o seu mérito (no caso de terem algum) justifica sem hipocrisia que aufiram vencimentos ou reformas equivalentes aos de 50, 100, 200 homens ou mulheres em idade laboral. Numa república não deveriam existir os privilégios “naturais” que uma casta, não raro incompetente e perdulária (a crise não começou em 2008 vinda do nada), parece ter. Na Suíça, tão reverenciadora do capitalismo e mais distante da crise do que nós, há uma maioria de população favorável a que se limitem as diferenças salariais nas empresas de modo a que o vencimento mais alto não seja mais do que 12 vezes superior ao mais baixo. E isto, que parece minimamente sensato e digno em qualquer circunstância, transforma-se numa urgência quando se vive o drama que vivemos em Portugal. Nenhum Salgueiro ou Borges deveria poder recitar a sua opereta sem antes ter sido aproximado da plebe pela via (da deflação) salarial. Não se trata apenas de justiça. Há alguma profilaxia nisto. Quanto menos homens couberem no salário desta gente, menos hipóteses haverá de encontrar nesse conjunto um que se sinta suficientemente indignado ou desesperado para achar a Lei de Lynch uma forma sedutora de reduzir o défice nacional.
Talvez o confisco dos ricos não chegue para pagar a crise, mas quem sabe não lhes inspira melhores contributos para a economia “geral” ou, pelo menos, os mantém num respeitoso silêncio.


P.S. Talvez queira (re)ler também este post do Canhões de Navarone: “Salários e responsabilidades”.

domingo, 10 de março de 2013

Lugares-comuns da nacionalidade

À entrada do supermercado, um junkie que por aqui passou na quinta-feira senta-se de pernas cruzadas à oriental, substituindo a mulher romena ou moldava que por ali costumava estar a pedir (e terá partido, talvez receando a concorrência nacional que aí vem). Entram duas ciganas jovens e, numa súbita inversão, ele oferece-lhes uma embalagem de croissants, certamente esmola cristã que tinha recebido mais cedo nesta tarde. Elas declinam, com cordialidade nas palavras e no tom
— Não, obrigada
e vão depois decididamente hesitar em frente a uma prateleira de bolachas e afins.
Talvez a oferenda dele enfermasse de um de dois automatismos genéticos, masculinos: os croissants como jóia possível para abrir o coração feminino ou o gesto esmolar como reacção típica perante elementos da velha tribo nómade.
Num instante de uma tarde chuvosa o mundo decidiu evocar, subverter ou misturar alguns dos lugares-comuns que fazem a nacionalidade, passada, presente e futura.

Tédio e pecado

O tédio não faz parte da tábua dos pecados mortais. É fácil, todavia, associá-lo à soberba — visto ele reflectir um certo desencanto perante as maravilhas da Criação — e à preguiça — da qual não raras vezes se origina. Mas, por outro lado, a sensação de tédio deve aproximar-se daquilo que o eventual ser divino experimenta face ao carácter repetitivo das coisas e ao esgotamento do possível. E assim se expurga um núcleo de pecado, com tal afinidade redentora.

Dar uma por semana (8)

Reputada: adj. f. Que voltou 'à vida'. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

Ganhar asas

Estou de rastos, se querem saber. Ao acordar li no Facebook que o Possidónio Cachapa correra hoje 15 km, e eu, que não quero ser menos escritor do que ele, achei que devia tentar o mesmo. Desci para junto ao rio da minha aldeia, que não é menos belo do que o Tejo dele. A certa altura, deu-me a modéstia (a moléstia foi mais tarde) e achei que os meus doze de máximo chegavam para me garantir um lugar humilde mas honesto nas letras portuguesas. Só que quando já orientava os passos para o Calvário que me finaliza a corrida resolveu cruzar os céus uma rara cegonha preta e, claro, fiquei embeiçado. Inflecti e alinhei-me com o rio da minha aldeia, para montante, como ela tinha feito. Imaginei, na minha idiotez matutina (para mim é manhã até tarde da noite), que a bicha haveria de aterrar no mesmo território onde se apascenta a garça-real de que já falei algures. Entre ir e vir seriam mais dois quilómetros, calculei. Se swingasse mais um pouco atingiria os 15 e poderia sentir-me, por direito próprio, alguém do métier literário. Chegado ao local não havia cegonha nem garça, apenas os sacos de plástico do costume presos nos mesmos galhos na orla da corrente. Suponho que não se faz poesia com musas ausentes e sacos do Continente, biodegradáveis que sejam. (Bem, sendo biodegradáveis e do Continente, talvez a Adília faça.)
Fiquei desolado. A competição para mim acabara. Ou já não competia pela distância mas para saber se sucumbiria por fraqueza das pernas ou síncope cardíaca. Arrastei-me como pude para casa, sem swing nem forças, pensando inscrever-me num dos cursos de escrita criativa do João Tordo — para me manter sob influência ornitológica e, quem sabe, ganhar finalmente asas. Se não para as letras, para que os 15 km me não pesassem tanto nas pernas.

sábado, 9 de março de 2013

Prazeres e números

Epicuro valorizava os «prazeres estáticos», não os «prazeres cinéticos». Os primeiros identificam-se com a ausência de dor e de perturbação; os segundos expõem-nos à possibilidade de elas se manifestarem. Apliquemos-lhes a matemática: os «prazeres cinéticos» e o sofrimento equivalerão ao conjunto dos números reais, exceptuando o zero — o qual, portanto, corresponderá aos «prazeres estáticos». Aqueles têm o seu simétrico, positivo ou negativo. Estes, como o zero, são simétricos de si mesmos — sem hiato, nem sombra, nem distância.

Polícia bom, polícia mau (versão político-económica)

Polícia bom, polícia mau. Ilustração de James Raynes

Uma das melhores maneiras de “quebrar” a resistência de um suspeito não cooperante, a crer nos filmes de Hollywood, é aplicar-lhe a técnica conhecida como «Good cop, bad cop»: um agente ameaça moer o suspeito de pancada, enquanto um outro lhe apresenta uma “face humana”, estendendo a mão amiga (ou pelo menos compreensiva) que traz promessas de redenção. A “face humana” é uma máscara e a redenção nunca chega, mas a farsa dá os seus frutos: a esquizofrenia da situação faz desabar as defesas psicológicas do facínora.

Para um governo política e economicamente esquizofrénico e alienado, nada melhor do que adoptar e adaptar semelhante técnica. Foi precisamente o que o primeiríssimo-ministro Vítor Gaspar pensou — e, se bem o pensou, melhor o fez, com um toque pessoal: em vez de polícias, economistas; e em alternativa ao binómio «bom/mau», tivemos direito a «mau/pior».

Para o papel de economista mau, Gaspar escalou-se a si próprio: tem tudo o que se pede para corporizar fielmente semelhante personagem — do carisma ao acerto das previsões macroeconómicas.

Para o papel de economista pior, arremessou-nos António Borges. O papel deste como assessor está agora claro: conceder, por comparação com as suas intervenções, uma ilusão de bondade relativa às ruinosas políticas do Governo.


P.S. O dogmatismo ideológico* é uma besta indomável: por vezes furta-se à vontade do dono, forçando-lhe a boca a fugir para a verdade. Para António Borges, a baixa de salários, incluindo o minúsculo salário mínimo, não é um mal (temporária e circunstancialmente) necessário — é «o ideal». (Ou será «o Ideal»?)


* Uma das manifestações deste dogmatismo é a ideia nunca verificada de que a baixa dos custos do trabalho (seja pela redução directa dos salários, seja pela diminuição dos custos associados, como a TSU paga pelas empresas) potencia a criação de emprego. Num interessante vídeo (5 min.), o milionário Nick Hanauer desfaz esta ideia, defendendo que o que cria empregos é a necessidade de as empresas satisfazerem as solicitações dos seus clientes. Ora, a esmagadora maioria dos consumidores são trabalhadores por conta de outrem — se os salários baixam, baixa também o poder de compra, logo, a capacidade de consumir e a necessidade de trabalhadores que forneçam os bens e serviços que as empresas têm para vender.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Dia Mundial [de Luta pela Igualdade de Direitos] da Mulher

NÃO HÁ BELA SEM SENÃO. Bonita e oca: o seu ideal feminino era a mulher-objecto. ... o único senão era semanalmente ter de mandar limparem-lhe o pó.

O esquecimento

Em vez de referir, na folha de teste, que «o esquecimento é a incapacidade de recordar», o aluno escreveu que «o esquecimento é a capacidade de não recordar». Tendo em conta o que pressupõem quanto ao nosso lado intencional, as definições são bem distintas: em termos psicológicos, aceitamos como válida a primeira; em termos metafísicos, não podemos excluir a segunda. Peço depois ao aluno que me clarifique a segunda: garante que no teste se «esquecera» da primeira.

Tomando nota

Uma das vantagens do meu parque-mundo é que os seus habitantes são como diamantes, prismas com muitas faces que brilham à luz do sol. Podemos tomá-los por vários ângulos, mostram-se-nos em cada circunstância com diferentes fulgores. Não sendo muitos, cada um é uma multidão. Quando o sujeito careca que se senta à hora do almoço na escadaria com vista para o rio pega num livro, por exemplo, podemos considerar que aproveita o almoço para ler, porque gosta, porque precisa de distrair o desgosto amoroso, porque a bancarrota ou o desemprego agora lho permitem. Ou podemos decidir ver diferente e concluir que o livro é na verdade um bloco de assentamentos, dos antigos, de capa dura, onde toma nota dos negócios da marijuana e do resto.

Os corredores e os melancólicos

Sempre que vejo um tipo (ou tipa) a correr no parque sinto um impulso de me deitar também a correr, mesmo que tenha acabado de o fazer. Tenho um instinto mimético neste campo, cresce-me uma inveja ou não sei o quê.
Mas não são os atletas os meus habitantes preferidos do parque. São-no os que deambulam e se detêm com ar melancólico a perscrutar um horizonte que o parque não tem, na exiguidade da sua topologia. Não sei o que olham. Um pássaro exibicionista? A corrente variável do rio? Uma sombra evocativa? Uma árvore, um ramo, uma flor? O crescimento da relva? As outras pessoas? O rabo de alguém? Tudo isto — ou seja, a vida? Talvez nada do que está no exterior, e é como se os seus olhos se rebolassem para dentro, a observar o que a cabeça contém, as memórias, as mágoas, as perdas, as inquietações, a felicidade que uma vez tiveram. Talvez os planos para um romance, uma peça de teatro, uma cantata, uma longa-metragem, um drama autobiográfico. Não é impossível que vagueie por ali gente desta, esquivando-se das pessoas como das gotas da chuva.
Seja como for, prefiro os melancólicos aos corredores — eu que sempre que posso acumulo em mim os dois.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Formas-pensamento

Segundo teósofos como Charles Leadbeater, cada pensamento cria uma determinada forma: uma forma-pensamento. Fantasia ou não, o produto afigura-se bastante insólito: entidade híbrida, possui o carácter intencional de uma consciência e, em simultâneo, a natureza opaca de uma coisa. Ora, ao encerrarem atributos assim tão contrastantes, as formas-pensamento parecem ser, em si mesmas, núcleos de conflito, existências embaraçadas, anseios inúteis. Se adejam por aí, talvez o façam tolhidas de desamparo, talvez dupliquem o absurdo usual dos dias.

A capital do México

À noite, o centro histórico é habitado apenas por ocasionais grupos de sexagenários debatendo em passeio digestivo o estado do país e dos clubes ou por arruadas histéricas de universitários que abandonam restaurantes e rumam a bares. Após os passeios dos primeiros e nos intervalos das hordas dos segundos, há momentos de silêncio. Silêncio a certa altura interrompido por um casal singular. Ele, gigante, bem constituído, barba negra, sotaque sulista com uma certa sofisticação. Ela, miudinha, magra, precocemente envelhecida mas não nova, pronúncia nortenha sem elaborações. Descem uma rua e berram um com o outro, não com ânimo de discussão ou protesto. Fazem-no como se a diferença de estaturas e latitudes fosse um abismo e tivessem de gritar mutuamente para serem ouvidos. Ele inclina-se para ela a cada passo como um boneco articulado; ela saltita ao pronunciar as palavras, como se as impulsionasse. Vêm num estado de espírito alegre. Almas gémeas em corpos e jeitos antagónicos. O assunto é geografia e para ela a capital do México é
— Cabu... Cabu...
— Não é a Cidade do México?
— Não, pá, é Cabu... Cabu qualquer coisa.
— Não sei por quê, julguei que era a Cidade do México.
— Cabu... Cabul! É Cabul!
— Pois, é isso, tens razão. Já tinha ouvido dizer — anui ele, numa concessão sincera mas ao ouvido inverosímil.
Param em frente à montra de um café aberto e ela, sem ceder nos decibéis, comenta qualquer coisa que vê na televisão ou atira imprecações lá para dentro. Riem alto e ele quase a enlaça pela cintura. Ela resiste. Mais uns passos e, mesmo ao virar da esquina, ele logra enlaçá-la pela cintura. Ela ri-se, coquete, lisonjeada, refilona, e inflecte o caminho.
— Não era por ali?
— Não, pá, é por aqui.
— Julguei que fosse por ali.
— Ouve, é por aqui.
Estão a retroceder nos seus passos antes de nova inflexão, mas ele não se mostra incomodado. O andar era acelerado, mas talvez não houvesse pressa, afinal. Pareciam ter um destino, mas se calhar isso pode ser alterado. Ela dir-se-ia feliz a desorientá-lo pela cidade, ele tem esperança num desenlace recompensador. Entre o terem-se abastecido no dealer dela e o recanto onde se ministrarão o que quer que tenham adquirido, o mundo apenas existe como décor da sua deambulação. Os que passamos por eles somos meros figurantes com quem, no seu enlevo romântico, não se importam de partilhar cada sílaba dita e cada gesto feito, ou a quem atirarão um impropério qualquer, se lhes der na veneta. A madrugada há-de apanhá-los a descoberto, menos eufóricos ou mais zangados com o mundo. Não é impossível que ela termine, como noutras noites, sozinha a vaguear pelas ruas a insultá-lo ou a insultar o mundo ou a insultar o deus que pariu este mundo. Ele, por enquanto, ainda confia que pode haver sexo e talvez ela nem tenha intenção de o desmentir, não por princípio. Um rendez-vous entre junkies não tem de ser radicalmente diferente das saídas das outras pessoas, mesmo que decorra uns decibéis acima do comum e tenha (um pouco) mais disponibilidade para errar pela noite.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Da curteza dos dias

Pesquisas esotéricas asseguram que, em virtude do «aumento da frequência vibratória do planeta», os dias — note-se que os relógios se vão adaptando à novidade — são cada vez mais curtos, e facilmente o percebemos. Mas, se «vibra» a Terra, tudo na Terra «vibra»: clepsidras, gestos, suspiros, tarefas, sonhos, embirrações, não havendo um termo comparativo susceptível de nos permitir dar conta da mudança. A situação permanecerá obscura se admitirmos que, para lá do orbe, o ardor «vibratório» é semelhante.

Movimento «Que Se Lixe a Troika» revê em baixa números da manif de Lisboa: afinal, foram só 799.999 a protestar…

Parece que havia uma turista infiltrada entre os manifestantes:


Senhores coordenadores do movimento «Que Se Lixe a Troika»:

A manif de sábado foi grande, não havia necessidade de “estimarem” em 800.000 os manifestantes na capital.

Com números tão fantasiosos, até parecem o Vítor Gaspar.

Terceira Lei de Newton

Os participantes concentram-se na zona de partida, formando uma multidão compacta e saltitante. Na orla, alguns apoiam-se em muros ou em postes e fazem alongamentos. Todos se agitam, aquecendo os músculos, o que concede àquela massa humana um pulsar nervoso. Há gente com um divertimento ensonado, matinal, e gente já um pouco histriónica. Os mais habituados apenas aguardam o sinal de partida, têm um entendimento burocrático dos prolegómenos. Ela observa uns e outros, tentando decifrar como a vêem a si, em que grupo a inserem. É a sua primeira meia-maratona, mas não gostaria de ser tomada por principiante, treinou muito, nos últimos meses tem vivido para a corrida, está cada vez mais resistente e mais rápida. Infelizmente, os seus pensamentos sobre ele não estão menos persistentes ou perturbados.
Inscreveu-se não para se divertir brincando aos atletas — integrando-se nos que apenas participam solidariamente, pela causa ou pela saúde, e desistem antes do fim, gozando com a própria baixa forma —, mas como consequência natural do treino, da necessidade de correr. E da recomendação do psicanalista, que, talvez por defeito de diagnóstico, viu virtudes na sua dedicação ao desporto. Embora não tenha exageradas ilusões quanto às suas capacidades de atleta, está decidida a competir, a disputar um lugar honroso. Ter objectivos destes é bom para si, é-lhe dito. E é tudo o que lhe resta, pensa com amargura.
O percurso, que sai do perímetro rural da cidade e termina na praça do município, há-de atravessar o parque onde ela treina. E esse momento será o derradeiro teste. Estará, quinze quilómetros depois, suficientemente motivada para chegar à meta numa boa posição e ficar feliz com isso? Ou a passagem pela entrada da ponte gorará todo o trabalho motivacional e ela regressará ao ponto de partida sem concluir a prova?
Ouve-se o apito e ela sai, primeiro num passo saltitante que não avança, aguardando que o grupo se distenda e os amadores abram alas, e depois alcançando progressivamente um ritmo que a mantém na peugada do pelotão de profissionais. Corre a primeira hora junto ao rio, numa zona onde ele já ganhou caudal e largura, e os seus pensamentos vão frequentemente mais rápidos, vogando contra a corrente, até ao local do desencanto. À chegada ao parque, contudo, mantém-se próxima da cabeça da corrida sem acusar demasiado o desgaste, e isso fá-la acreditar na possibilidade de ficar entre os primeiros (pelo menos entre as primeiras). É a única alegria em muito tempo. Talvez possa haver outras razões para se correr. Para se viver. Põe pela primeira vez toda a energia e concentração no esforço de chegar à meta. Passa pela ponte sem consciência total de passar por ela. Na praça, há uma outra multidão à espera dos atletas. Familiares, amigos, curiosos, imprensa. Há ovações quando chegam os vencedores da prova e, não muitos minutos depois, há ovações quando ela conquista o terceiro lugar do seu escalão.
À sua volta vê sorrisos e entre os sorrisos está o dele. As pessoas batem palmas, e ele bate palmas. Bate-lhe palmas. Há outros conhecidos a bater-lhe palmas, divertidos e vagamente orgulhosos da sua façanha, mas é a ele que ela se dirige, meio entontecida com o cansaço, vivendo a alucinação de o ver aplaudi-la e sorrir-lhe. Numa imitação de outros atletas, quer abraçá-lo, lançar-se-lhe ao pescoço, partilhar a sua felicidade, que já nem sabe muito bem qual é, mas ele intercepta-lhe as mãos a meio do percurso, oferece resistência e por momentos são a figura viva da terceira Lei de Newton — e naquele braço de ferro ela pondera o triatlo.


P.S. Terceira parte de uma narrativa, que depois de revista a segunda parte, se poderia chamar “Uma carreira no desporto”, ou algo parecido.

... e mais de 3300 anos depois, o Egipto vinga-se daquilo do Êxodo 7–12


Êxodo, capítulos 7 a 12. Em todo o rigor, os gafanhotos constituem a oitava praga (Êxodo 10:1–20).

Xauzito!


A origem do mito

As suas correrias levaram-no ao jardim onde está o pequeno santuário da Nossa Senhora. A determinado momento, ao levantar a cabeça deu com o nicho envidraçado e deteve-se, como se atingido por um raio paralisante de um super-herói ou de um invasor alienígena. Talvez tivesse ficado curioso com a estatueta branca, tentando decifrar a ideia por detrás daquilo ou fazendo uma apreciação estética. Ou talvez tivesse parado para ouvir algum recado, uma confidência — diz-se há muito que a Virgem fala com as crianças. Quase um minuto depois, saiu de novo em correria a saltar os canteiros, não se sabe se para regressar à escola, se para fundar um novo culto religioso.

terça-feira, 5 de março de 2013

Júbilo forçado

Há livros de auto-ajuda que obrigam a pessoa a imaginar-se em puro regozijo a cada instante, sem direito a intervalo para suaves melancolias. Não está aqui em causa a validade da «lei da atracção» nem a pertinência do ditame que manda, conservando a sensatez, «fingir até que seja verdade». Acontece é que, se tais regras forem certas, a ditadura do júbilo forçado e contrafeito poderá não «atrair» outra coisa além da obsessão, da neurose ou da megalomania.