A revelação de que Pedro Passos Coelho deveu cinco anos de contribuições à Segurança Social, e que só quando o Público levantou a lebre é que o primeiro-ministro pagou parte (!) dessa dívida, gerou dois tipos de reacções: a dos membros do Governo e estruturas do PSD, lestos a encontrar culpas alhures, e a das pessoas com algum sentido de verdade.
As reacções governamentais e afins não comentarei para lá de dizer que, está visto, não há limites à falta de vergonha. (Eu é que ainda tinha ilusões neste particular.) Quanto às restantes, venho aqui pôr-lhes um embargo, passando desde logo por cima de apodos como «caloteiro», que me parecem apoucadores da discussão.
Alegou Passos Coelho que «não tinha consciência» de que as contribuições para a Segurança Social eram obrigatórias. Esta estranha “defesa” foi recebida, unanimemente e bem, com a recordação de um princípio fundamental do Direito: o desconhecimento da Lei não obsta à obrigação de a cumprirmos — ou em tudo se alegaria ignorância e siga a festa! Mas aqui surgiu uma divisão: entre os que descartaram tal alegação como pura mentira (como poderia um político profissional, ex-deputado, desconhecer o mais básico das suas obrigações legais?) e os que classificaram de inadmissível que tamanho ignorante desempenhe cargos públicos, para mais que encabece o Governo.
Disseram alguns destes últimos que já desconfiavam que Pedro Passos Coelho subira nas estruturas partidárias, não por mérito, mas por uma cuidada mistura de servilismo, clientelismo e compadrio, a que haveria a somar uma cara laroca para fazer boa figura nos cartazes de campanha: mais do que timoneiro, o primeiro-ministro seria o “poster boy” dos demolidores do Estado. A admissão de ignorância permitiria também contextualizar a insensibilidade de um primeiro-ministro que, em Setembro de 2012 (quando já sabia ser devedor à Segurança Social), veio anunciar um brutal aumento da Taxa Social Única a pagar pelos trabalhadores: Pedro Passos Coelho simplesmente «não tinha consciência» do que estava a falar — para ele não seria clara a diferença entre TSU e RSU, tal como, acrescentavam alguns, entre BCE e BCG...
Admitindo alguma verdade no diagnóstico expresso no parágrafo anterior, venho aqui deixar o meu embargo: mais do que da ignorância pura e dura, Pedro Passos Coelho foi vítima de uma ignorância (ou incompreensão) mais subtil, que designarei «literalismo reducionista», abrindo de seguida parênteses para, com um exemplo, deixar claro em que consiste tal conceito.
[Na minha infância, no Pátio das Cantigas, existia um grande tanque ao ar livre, pertencente à cerca do antigo Convento de São Domingos. Esse tanque era o local de eleição para a desova de dezenas de rãs, de que nasciam, para nosso fascínio de crianças, centenas de girinos que designávamos “peixes cabeçudos”.
Lembro-me que a certa altura começaram a surgir quantidades apreciáveis de girinos mortos. Fui rápido a apontar a suposta causa: tendo o tanque sido limpo pouca semanas antes, os anfíbios morriam à fome, por falta das algas a que chamávamos “lodo”. E tão certo estava do meu diagnóstico que, tendo aprendido havia pouco a escrever, logo fiz questão de comunicar por escrito à minha irmã as minhas conclusões quanto a tão preocupante hecatombe: «Os peixes cabeçudos estão a morrer porque não à lodo.» Assim mesmo, com «à» em vez de «há».
O bilhetinho foi lido pelo meu pai, que logo me chamou a atenção:
— Fernando, então já não te dissemos que quando há ou existe se escreve com agá, e que só nos outros casos é que é sem agá e com acento para trás?!
— Pois é, Pai, mas neste caso não há lodo!
De facto, conforme era visível no meu bilhete, eu inicialmente escrevera «há», mas, atendo-me literal e redutoramente à noção de que assim, com agá, era só e só quando havia algo, tinha riscado a palavra correcta e escrito «à» por cima.]
E assim voltamos à «falta de consciência» de Pedro Passos Coelho de que, enquanto consultor da Tecnoforma, estava obrigado a pagar contribuições sociais.
Ao contrário do que alguns, inegavelmente mal-intencionados, afirmaram, o primeiro-ministro não ignorava tout court a obrigatoriedade de os trabalhadores independentes contribuírem para a Segurança Social. Em boa verdade, Passos Coelho, caindo como o eu da minha infância no erro do literalismo reducionista, simplesmente acreditava estar isento: na sua inocente interpretação da letra da lei, tais contribuições obrigatórias aplicavam-se exclusivamente aos detentores de rendimentos do trabalho — e a sua colaboração com a Tecnoforma configurava um tacho.
P. S.: É também falso que Pedro Passos Coelho não saiba a diferença entre TSU e RSU, ou entre BCE e BCG. O primeiro-ministro sabe bem a diferença: em ambos os casos, «uma letra».
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