segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Regressar a casa


(clique)

Escrevi anteontem para uma apresentação de Os Idiotas em Vila Pouca de Aguiar um texto a que chamei erradamente “Regresso a casa”. Erradamente porque para regressar a casa tinha na verdade de recuar 25 anos e não dez, 33 quilómetros e não 27. Não li o texto, mas insisti nos equívocos passando uma boa parte do tempo a falar do livro errado, do Hotel do Norte. Talvez seja da época, do toque de recolher à família que se ouve entre os jingles do comércio natalício. Por isso, ou por outras razões igualmente (con)sanguíneas, devo ter achado que esta era a altura de apresentar a minha obra sobre as Pedras Salgadas e não a minha obra sobre Portugal.
E assim não hesitei em alimentar mais equívocos, reduzindo ambos os livros (como voltei agora a fazer) a meros postais ou crónicas de territórios delimitados, regiões demarcadas do autor. A catalã residente no Alentejo Natàlia Tost a pretender que Os Idiotas se traduza para outras línguas, e eu a confundir a minha cartografia mental com a minha cartografia geográfica.

Parece-me que não há mal nenhum em publicar crónicas territoriais ou de época, mas devia ter-me lembrado que não escrevi monografias. Suponho que, por exemplo, o livro de Bruno Vieira Amaral As primeiras coisas não é bom por ser um levantamento sociológico de um bairro, mas por ter criado o Bairro Amélia a partir de matéria humana não exactamente circunscrita. Analogamente, o Hotel do Norte nunca existiu senão na minha imaginação (alimentada, naturalmente, de memórias, experiências, testemunhos, mas também da filmografia e da biblioteca eclécticas que fui instalando nas dobras do meu cérebro — e mais fundo, nos interstícios da alma, considerando a eventualidade de ter uma).
Não precisavam de ter demolido o verdadeiro Hotel do Norte, como fizeram, para que eu pudesse defender que ele é a minha fantasia. Um escritor não precisa de álibi nem de apagar impressões digitais, ou de fazer desaparecer provas, para cometer os seus crimes literários. O edifício podia permanecer que o livro continuaria a existir numa realidade alternativa e com fundações mais devedoras à mecânica quântica do que à velhinha, previsível e mensurável física de engenheiros civis, arquitectos e pedreiros.

Se me encomendassem (como aliás deviam) uma monografia sobre Pedras Salgadas, a “rainha das termas”, temo que seria desonesto da minha parte aceitar o serviço. É que não há uma correspondência absoluta entre aquele pedaço de território e o que eu frequento nas minhas visitas à terra. Por vezes julgo, ao passear no parque, que me passeio entre fantasmas, tal a quantidade de imagens e silhuetas que cada recanto, cada edifício, cada árvore espoleta. Mas depois de pensar no assunto, descubro, como no filme The others, que o fantasma sou eu. Não precisava de haver nevoeiro como havia para que o meu vulto no crepúsculo de hoje fosse espectral, deambulando solitário por entre o que resta ali de passado e o que se construiu de futuro. O hóspede de uma das eco houses que veio fumar para o alpendre não deu pela minha presença na vereda senão por um leve arrepio na espinha. Ele não estava a invadir mais o meu território do que eu o dele. Ou vice-versa. Na verdade, coexistimos em universos paralelos. Tal como é um universo paralelo aquele onde eu entro quando desço à cave da velha casa da família (e aos níveis mais subterrâneos do meu ser) e descubro os objectos familiares com que ficciono aquilo que antes confundia com recordações. Se me perguntarem onde eu estava em determinado dia de há trinta anos, talvez eu tenha um álibi convincente, mas ele é necessariamente forjado. Literariamente forjado.

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