quarta-feira, 31 de julho de 2013

Conclusões

Subindo o escarpado monte, reflectia metafisicamente: «O caminho é único; o ponto de chegada, absoluto.» Atingido o topo, e observando outras possibilidades ascensionais, concluiu: «Os caminhos são diversos; o ponto de chegada, único.» Ao descer, contemplando os múltiplos lugares do sopé, mudou de perspectiva: «Os caminhos são inumeráveis. Os pontos de chegada também.» A certa altura desequilibrou-se, caiu e foi a rebolar desamparado. Surgiu-lhe então esta ideia: «Os caminhos são circulares e não levam a lado nenhum.»

terça-feira, 30 de julho de 2013

Diálogo

«Se acaso estiver com ele, diga-lhe que eu nunca mando recados por ninguém.» «Fá-lo-ei. Prometo.» «E que sou directo, frontal e não admito rodeios.» «O homem ficará totalmente esclarecido.» «Já agora, diga-lhe também que eu o considero imbecil.» «Hum... Mas será que ele vai compreender?» «Qualquer imbecil é capaz de compreender isso.» «De facto, pensando melhor, até eu compreendo bem. Quer que lhe entregue mais algum recado?» «Não é necessário. Agradeço. O resto posso enviá-lo por e-mail.»

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Carpe aestivum

— Por vezes — disse Mário — penso que o Verão, aquela altura do ano em que vamos definitivamente ser felizes, é um mito, uma projecção dos nossos desejos mais íntimos. Ou talvez uma evocação. Sim, definitivamente uma evocação. Vejamos: o Verão existiu, um dia houve Verão. Não é como Deus ou os santos, nos quais temos de acreditar sem evidências nem testemunhos, cegamente. Não é uma questão de fé — mas está imbuído da mesma intangibilidade. Temos as nossas memórias dele, sem dúvida que temos. A felicidade estava ali, por todo o lado, inundando tudo naqueles fins-de-tarde intermináveis, como uma cornucópia generosa que não parasse de jorrar luz e prazer e boas coisas a todo o momento, um regador gigante manuseado pela mão de Deus, aspergindo com uma nuvem de vapor inebriante, muito fina e suave e fresca, os nossos dias incontáveis e incontados.
— Mas o Verão — continuou Mário — não tem existência senão no passado, por isso o seu carácter mitológico. Ano após ano alimentamos a esperança de que agora é que vai ser, vamos repetir tudo a que temos direito, o ócio, as sestas depois de almoço, os planos para as diferentes partes do dia que se não se cumprirem não importa pois há tantos dias à escolha, as manhãs sem fim, os almoços longos, com sobremesa, as tardes a perder de vista, os jantares com guitarras e cantorias eufóricas, as noites também habitáveis, usufruíveis (a uma da manhã à distância da Namíbia, se não mais longe ainda, de qualquer modo sempre para lá do Bojador).
— Depois eles acabaram com o Verão. A humanidade prestes a cumprir-se (as máquinas farão as coisas chatas, dizia-se em 1900 — em 1900!) e eles a acabar com o Verão. A tecnologia de ponta, a riqueza, o voto universal, a igualdade, o amor livre, o homem na Lua, tantas evoluções — e eles a acabar com o Verão.
— Em 1967 eu ainda não sabia que eles estavam a acabar com o Verão. Quer dizer, eu estava a nascer, não é?, não podia reparar logo nisso, tinha as minhas próprias prioridades. Durante os primeiros anos e os seguintes, tudo o que fiz foi aproveitar o Verão, carpe aestivum. Não de uma forma táctica, oportunista, reflectida, filosófica, ideológica. Não. Nada disso. No sentido menos consciente da expressão. Apenas mergulhando plenamente nele, de trombas, de barriga, de costas, lançando-me para ele como pudesse e a todo o momento. O Verão estava ali à mão de semear, era gratuito, para todos, cada um que fizesse dele o que quisesse. Não havia um minuto a perder (embora houvesse imensos minutos para perder), tudo o que tínhamos a fazer era dar uma corridinha rápida, um saltinho para o ar na beira e, zás, cair nele de cabeça, formosamente, atleticamente, imensamente, para sempre.
— Sim, para sempre. Aqueles que mergulharam no Verão naqueles anos sabem do que falo. São, como eu, os despojados do Verão. O cume da raça humana, a quem subitamente tiraram o tapete de debaixo dos pés. O tapete não, a prancha, o trampolim. Íamos nós para mais um salto, joelhos ligeiramente flectidos para o impulso que nos lançaria nos céus como um Ícaro sem percalços e de repente também nós temos um percalço. O maior deles todos. Não há prancha. Não há trampolim. Não há Verão. De todo. Há apenas a queda. A longa e interminável queda. O lado simétrico do Verão. Algo que nos puxava para baixo onde antes nos sentíamos enlevados. Para baixo, sempre para baixo, Alice caindo pelo buraco mas sem nunca chegar ao País das Maravilhas. Nem a lado nenhum. Nem sequer ao Inferno, que poderia ser um sucedâneo do Verão, com o seu próprio calorzinho. Não. Nada. Apenas a queda. A Queda e o Tempo. Tempo para ponderar a perda. Para gravar mais profundamente na nossa pele o que estávamos a perder. Não como o Verão gravava na pele a sua infinita bondade, com uma cor, um tom, o bronze, nalguns casos o ébano puro — sem escaldões nem melanomas.
— Depois de alguma vez se ter entrado no Verão, como eu entrei, como nós entrámos, a vida torna-se muito difícil. Há a Queda, claro — aguardamos a todo o momento ficarmos esborrachados, como um poio a cair do cu de uma vaca lacónica —, há a queda, mas houve o Verão. Estamos para aqui a cair, sempre a cair, mas temos uma memória, algures no nosso cérebro temos registos de que houve um Verão. Um não, dez ou vinte, a eterna repetição, a terna repetição da melhor coisa que o mundo teve. Haverá castigo maior do que esse? Conhecer o Paraíso e perdê-lo? Saber como as coisas podem ser e depois sermos informados de que nunca mais as coisas serão assim? Que daqui para a frente o que nos resta é lembrar, lembrar e chorar a perda até à neurose? Freud, Freud, onde andas? Era isto que tu querias, não era, meu sacana? A humanidade a remoer as suas neuroses e a comprar os excitantes, os calmantes, os soníferos que gajos como eu prescrevem aos outros e a si mesmos. Que bela ideia de negócio, a tua, ó sócio.
— Quer dizer, se ao menos as férias não fossem apenas um mês, se pudéssemos ir três meses para França, para o Loire, alugar um castelo com piscina até nos aborrecermos… Deliro, bem sei. Fico sempre assim quando chega o Verão — concluiu Mário.

*in Aranda

«Como está?»

Sucessivamente interrogado se era um deus, um anjo ou um santo, Buda disse que não a todas as questões. «Então o que és?» Ele respondeu: «Estou desperto.» Talvez na filosofia oriental, ao invés do que sucede na ocidental, o «estar» ganhe primazia relativamente ao «ser». Mas o cumprimento quotidiano assenta, afinal, nesse mesmo padrão. «Como está?» Eis uma pergunta frequente que escassas vezes pede uma resposta. «Estou desperto.» Eis uma resposta invulgar que raramente exige uma pergunta.

domingo, 28 de julho de 2013

Sobre o «agora»

Nem sempre os especialistas no tema — como Eckhart Tolle — distinguem com rigor o «agora» enquanto ponto em que eternamente se está do «agora» enquanto ponto em que é desejável que se esteja. No primeiro caso, o conceito é de origem factual; no segundo, é de natureza valorativa. Pretende-se, claro, que «ser» e «dever ser» coincidam. Mas há quem acredite «viver no eterno agora onde tudo está bem» e sinta repugnância ao notar que pisou bosta de vaca.

sábado, 27 de julho de 2013

Um violento «caso acontecido»

Vinha do monte, com lenha às costas. Uma mulher acusou-o de lha ter roubado. Ele chamou pelo pai, que modelava louça na roda. Ela chamou pelo filho, que estava na cama, adoentado, junto de suposta amante. Discutiram. O oleiro recebeu do enfermo uma sacholada que lhe abriria a cabeça. Tentaram curá-lo pondo-lhe açúcar na irremediável ferida. «Eu hei-de matar aquele ladrão!» — foram as suas últimas palavras, três vezes ditas. O «ladrão» morreu na cadeia, um mês depois.

Lyre Bird

Os vizinhos da esquerda e da direita têm as televisões sintonizadas no mesmo canal merdoso que entretém e lava o cérebro dos reformados deste país, um dos três canais merdosos que Rangel, Moniz & C.ª Lda. nos legaram. Como são bastante surdos (os vizinhos), têm geralmente o volume dos aparelhos no vermelho, e a essa circunstância irritante junta-se o delay, o atraso na recepção do sinal entre a TV à esquerda e a TV à direita. Resulta que se não me distraio o suficiente ouço a Júlia Pinheiro, a Fátima Lopes e as novelas em cânone, estão a imaginar o pesadelo.
Hoje apenas uma das televisões estava ligada e, talvez resultado da boa combinação entre Foster Wallace e um tinto carregado alentejano, de repente pareceu-me que o vizinho sul (o outro dormia a sesta) ouvia ‘Elephant’, das Warpaint. Apurei o ouvido e foi difícil convencerem-me que era apenas mais uma pimbalhice que o vento distorcia ao ponto de fazer parecer música o que era apenas gargarejos de um cérebro aditivado com botox.

Liguei o portátil para vos dar conta deste fenómeno alentejano e acabei a pôr as meninas de Los Angeles a cantar. Para meu espanto, o vizinho acordado (o outro ressonava), que eu julgava surdo como um portão de quinta, no final da música continuou com o assobio do outro lado do muro a melodia principal de ‘Elephant’, como se fosse um conhecedor profundo da obra das Warpaint. Repeti a experiência com o mesmo resultado e concluí que, ao contrário do propagado por Moniz, Rangel & Sons, o povo não têm necessariamente mau gosto — ou que o vizinho tem alma de Lyre Bird.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

A heroicização do Álvaro

Álvaro Santos Pereira saiu do governo e os bloggers de direita correram a escrever-lhe a hagiografia. Um exemplo paradigmático é o de Henrique Raposo:

«A atmosfera que rodeou Álvaro Santos Pereira merecia um estudo de caso. De forma inconsciente, o ex-ministro conseguiu a proeza de atrair contra si um conjunto de vícios que caracterizam bem as elites da ditosa pátria. Comecemos pelo mais evidente: a snobeira. Quando pediu para ser tratado por “Álvaro”, este homem cometeu o maior dos pecados no país dos doutores, retirou a importância aos cargos e títulos para grande irritação da porcelana que exige ser tratada por “V. Exa.” Pior: ao cheirar esta inocência tão americana, os cínicos profissionais de Lisboa atacaram como uma alcateia de hienas gozonas. Que ganda totó, pá. Nestas cabeças provincianas que se julgam moderninhas, Álvaro não procurou introduzir em Portugal um trato pessoal simples e até igualitário no sentido americano. Nada disso. Ele apenas mostrou que é um totó, um fraco, um saco de boxe. E assim foi: uma multidão de palhaços pomposos passou dois anos a socar o totó que veio do Canadá, esse sítio atrasado onde as pessoas, vejam bem, só são tratadas pelo nome próprio.»

Tudo isto é uma falácia, claro.

Pedir para ser tratado por «Álvaro» não foi um acto de inocência de um homem vindo de uma terra menos centrada em títulos, mais igualitária. Querer ser o «Álvaro» fora do seu círculo íntimo foi, isso sim, um acto de demagogia: Álvaro Santos Pereira tentou fingir ser mais um dos nossos amigos, talvez para atrair mais simpatias; saiu-lhe mal a jogada.

Até porque é falso que no Canadá os jornalistas tratem os detentores de cargos públicos com a familiaridade do primeiro nome. Nesta conferência de imprensa, o ministro canadiano das Finanças é referido como «Jim Flaherty» ou «Mr. Flaherty», e o até então Governador do Banco do Canadá é referido como «Mark Carney», «Mr. Carney» ou «Governor Carney» (o mais frequente).
(O ministro trata o ex-governador uma ou outra vez por «Mark», mas apenas no contexto mais intimista de uma resposta, em que expressa a pena sentida por vê-lo partir; os jornalistas nunca os tratam tão familiarmente.)


Outra vertente da heroicização do ex-ministro Santos Pereira é apresentá-lo como vítima sacrificial de um sistema político que não tolera estranhos. É esta a linha, por exemplo, de João Quaresma («O sistema não tolera os outsiders.»). Também isto é uma falácia. Não que o sistema político nacional não seja extremamente desconfiado dos independentes, a quem trata por vezes com inclemência. Tudo isso é verdade. Mas essa desconfiança para com os não-boys não explica totalmente a falta de poder de Álvaro Santos Pereira no governo.

Vítor Gaspar era bem mais outsider do que Álvaro Santos Pereira: tal como este, o ex-ministro das Finanças estava fora do sistema partidário. Mas, ao contrário do ex-ministro da Economia, Vítor Gaspar fez questão de por mais de uma vez deixar claro o seu afastamento — e até mesmo o seu desprezo — relativamente aos militantes do PSD. E se Álvaro Santos Pereira fora ainda outsider num outro sentido (ex-emigrante no Canadá, condição que o ex-ministro não se coibiu de usar em demagógicos exercícios de autovitimização, imputando a outros sentimentos discriminatórios que não existiam, e que ele sabia não existirem), Vítor Gaspar foi outsider em todos os sentidos: não só se viu que as suas teorias económicas não funcionam neste mundo, como a lentidão demonstrada no domínio, não apenas da língua portuguesa, mas verdadeiramente da humana forma de comunicação oral, sustentam a hipótese de ser ele um verdadeiro alien, um extraterrestre. (As semelhanças com o E.T. de Steven Spielberg eram, de resto, evidentes — se refreei até agora a comparação foi por respeito à adorável personagem cinematográfica.)

Apesar disto tudo, Vítor Gaspar era o homem mais poderoso do governo. Ao contrário de Álvaro Santos Pereira, que foi encostado ao um canto e finalmente demitido, Vítor Gaspar mandou em tudo e saiu quando ele mesmo decidiu, deixando os demais como umas baratas tontas, sem saberem o que fazer.

Álvaro Santos Pereira foi um outsider desprovido de poder. Mas a sua falta de poder não foi promovida pelos insiders, mas por um outsider ainda maior, que o relegou à insignificância. Foi esta percepção de que Santos Pereira não mandava nada, e não o seu pedido de um tratamento familiar, que estimulou os críticos (incluindo jornalistas) a saltarem-lhe à jugular. Como na selva, em política as fraquezas expostas são rapidamente detectadas e exploradas pelos predadores.


Ilustração: wehavekaosinthegarden.wordpress.com

Acerca do essencial

Devemos a máxima a Saint-Exupéry: «O essencial é invisível para os olhos.» Acontece, porém, haver coisas «visíveis para os olhos» manifestamente essenciais. Pelo menos se desejamos manter-nos vivos. A sentença corre também o risco de sugerir que o «invisível para os olhos» é sempre essencial. Sabemos, contudo, que existe imenso lixo a poluir o «mundo interior». Dir-se-á que Saint-Exupéry não se refere ao «aparentemente essencial», antes ao «verdadeiramente essencial». Essa, no entanto, afigura-se uma ideia «altamente supérflua».

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O melhor e o pior

Apoiando-se nos supremos atributos do Criador, Leibniz achava que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao invés, baseando-se na ideia de que, se fosse ligeiramente pior, o mundo deixaria de existir, Schopenhauer pensava que vivemos no pior dos possíveis mundos. No entanto, talvez nunca o melhor dos mundos originasse um Schopenhauer que visse nele o pior, nem o pior gerasse um Leibniz que visse nele o melhor. Há teses que parecem ter nascido para mutuamente se anularem.

terça-feira, 23 de julho de 2013

O estatístico e o moralista

Conta-se que certo estatístico, viajante frequente de avião, se sentia apreensivo ao fazê-lo, por causa das ameaças de bomba. Mas concluiu que a probabilidade de haver uma a bordo era escassa e a de haver duas era mínima. Passou então a levar uma consigo. Também certo moralista se sentia prisioneiro do remorso desencadeado pelo único erro grave que cometera. Pensou melhor e concluiu que seria libertador poder transitar entre dois remorsos. Decidiu então cometer outro erro grave.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Estátuas singulares

Naquele país, as estátuas dos humanos não possuíam cabeça, faltava-lhes o tronco e dos membros pouco era visível. O pedestal exibia a inscrição e, no topo, um baixo-relevo. Ao atingirem a idade adulta, todos os habitantes recebiam o convite para que tirassem o «Eterno Rasto», o documento onde se registava a configuração do pé. Quem pela celebridade o merecesse teria, após a morte, a pegada sobre a peanha. Dizia-se: «O rasto é tudo, o resto é nada.»

domingo, 21 de julho de 2013

O intelecto, a imaginação e o Universo

Se for infinito, o Universo não se adequa ao intelecto; se for finito, não se adequa à imaginação. Ora o Universo ou é finito ou é infinito. Logo, ele é inadequável à imaginação ou ao intelecto. Pouco preocupados com isso, garantem vários redactores de livros de auto-ajuda que «o Universo conspira a favor do indivíduo». Eis uma tese cuja defesa, para ser minimamente honesta, exigirá sempre um esforço violento do intelecto e um empenho tremendo da imaginação.

sábado, 20 de julho de 2013

O desenho

Adquiri, em alfarrabista, um livro intitulado Vidas de Grandes Filósofos. Não reparei, na altura, que o capítulo dedicado à biografia de Kant reservava uma ilustração francamente dispensável. Após algumas páginas de sublinhado compulsivo, indício de que o anterior dono ali colhera ideias fortes, surge um desenho sobre os parágrafos alusivos à passagem kantiana da «razão teórica» à «razão prática». Trata-se da representação de um pénis de aspecto ovóide, com os testículos respectivos e exactamente sete pêlos púbicos.

O meta-recorde

Aos vinte anos fez a primeira tentativa de inscrever o seu nome no 'Livro de Recordes do Guinness'. Falhou. Tentou de novo: falhou. Tentou uma terceira, uma quarta, uma quinta vez: falhou, falhou, falhou. Nos cinquenta anos seguintes tentaria uma e outra vez, incansavelmente, estabelecer o recorde a que se propusera. Rotundos fracassos, sempre. Entrou para o 'Guinness'.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Apagar

Abro um ficheiro com certo diário que mantive ao longo de mais de três anos. Sempre que o revisito (faço-o regularmente) apago, em geral, um parágrafo. Por vezes, salvo uma ocorrência, conservo um pensamento, guardo uma expressão. Mas o imperativo é apagar. Se pode tornar-se entusiasmante a rápida criação de textos quando nos guia a promessa do livro novo, chega a ser redentora a lenta extinção de frases quando nos guia o ideal da página em branco.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Coisas da memória

Há mais de sessenta anos, em noite festiva, enquanto ela dançava com um moço, um outro aproximou-se e disse-lhe: «Compromisso!» Uma faca surgiu então, indo instalar-se no ventre do intruso. A jovem fugiu. De cada vez que lhe ouço o testemunho, há variantes e revelações. Só parecem destinados a manter-se a irrupção do «compromisso» e o movimento da faca. A memória tem destas coisas: rasga silêncios e mutila sombras, porque a habitam palavras decisivas e objectos cortantes.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

(In)satisfações

Com uma teoria hedonista mais apurada que a de Jeremy Bentham, Stuart Mill propunha a diferenciação qualitativa dos prazeres em superiores (mentais) e inferiores (corporais). Baseando-se em critérios empíricos, defendia que «é melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito». Eis uma tese que nunca satisfará os porcos, pois eles não a entendem, nem os humanos que a entendam bem. Nenhuma filosofia intervém na satisfação dos primeiros. Qualquer filosofia prolonga a insatisfação dos segundos.

Insuficiências da juventude

Eles estão nos quarentas. Duas delas andam pelos trinta e a outra ainda não sabe o que é isso. As despesas da conversa correm sobretudo por conta deles e abordam dois tópicos: desporto e saúde. Eles fazem jogging, vão ao ginásio. Estão elegantes, planeiam maratonas. Já pesaram mais do que deviam e tiveram a respectiva ameaça de remédios para o colesterol. Agora fazem desporto e tomam atenção ao que comem. Falam durante um bocado de hambúrgueres, mas só pejorativamente, com detalhe de antigo agarrado. Comparam dietas de diferentes países, concluindo que por aqui se come mal (não exactamente do ponto de vista do paladar). Um deles exibe, como bilhete de lotaria premiado, o ticket de uma daquelas máquinas que medem tudo: massa corporal, peso, altura, pulsação, tensão arterial. Trocam informações sobre os últimos valores do colesterol. Falam de dores nos joelhos e nos tornozelos. E de exames, feitos e agendados. Banais TACs, mas também endoscopias e colonoscopias. Aqui começa a ser difícil distingui-los de reformados na sala de espera do centro de saúde. Discutem se dói, se não dói. Se a anestesia, que se paga à parte, mesmo estando isento, é uma necessidade ou uma mariquice. Falam da impressão ou emoção (nisto divergem) de ver no ecrã o interior das próprias entranhas, da dificuldade e do suor da médica nas manobras de aproximação ao intestino delgado, da limpeza que o exame revelou (resultado de uma preparação bem feita).

Os elementos femininos vão intervindo a espaços, tentando fazer humor, aduzindo testemunhos de pais ou tios, experiências de que ouviram falar. A mulher mais nova há muito que mudou de cadeira e se recostou à sombra de uma sebe, com ar melancólico, observando o voo dos insectos à luz dos candeeiros. Quando finalmente dão por isso, as outras metem-se com ela, perguntam-lhe o que se passa. Ela sai do silêncio e do torpor com ânsia de palrar: está farta desta conversa, só falam de coisas de que ela não sabe, de que não percebe nada. Di-lo com uma expressão sinceramente desolada, de quem queria participar no convívio e se sente frustrado por não ter as ferramentas, os argumentos — e não, como podia, a vangloriar-se da sua juventude.

Aceito uma cagarra

aceito uma cagarra em troca de um cabouco/cabaco

A propósito disto: «Jardim acompanha Cavaco na visita às ilhas Selvagens».


(Pensando bem, ainda há lugar para mais uma cagarra ou duas...)

Quim Barreiros dirige JN por um dia

Ao que parece, o Jornal de Notícias apresentará uma excelente prova de bom gosto como manchete de amanhã (hoje, para a maior parte de vocês). A tentação é culpar o jornal, mas um jornal não existe sem leitores. O Norte, e não só o Norte boçal, tem defendido teimosamente o JN como o “seu” jornal, apenas porque o pasquim inclui mais páginas de noticiário regional, mesmo que irrelevante. Os empresários e as luminárias do Norte sempre preferiram a noticiazinha paroquial, ainda que medíocre, a uma informação decente. As mesas de café, os consultórios de dentista e todos os velhos solares acima do Mondego revestem-se de JN. Não sei porque se queixam de o Norte ter perdido influência. Parece-me que disputamos bem o primeiro lugar ao Correio da Manhã no que toca a irrelevância ruidosa e grotesca.

(Isto faz-me lembrar como, à escala provincial, os transmontanos preferiram deixar morrer o Semanário Transmontano, o único jornal digno de prelo que aqui conheci.)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Metamorfose e experiência

Ter-se convertido em insecto não subtraiu inteiramente Gregor Samsa à espécie humana. A experiência foi a de um contraste. Já a pergunta de Thomas Nagel «Como é ser-se morcego?» sugere um âmbito menos híbrido. Só lhe responderíamos sendo «puros» morcegos. Porém, isso inviabilizaria o interesse da questão. Cada existência persiste intransferível em si mesma. Podemos, claro, imaginar uma realidade supraconsciente que integre experiências múltiplas de entes inumeráveis. Mas essa ideia, além de cientificamente vazia, é potencialmente delirante.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Hiatos

Se o discurso de outrem incomoda e não se vislumbra modo oportuno de o evitar, ganha-se em ficar atento aos silêncios existentes entre as frases, cada um detendo moldura própria e timbre específico, graças às características sonoras da palavra que acaba de ser dita e daquela que não tarda a surgir. Escolher os hiatos em vez da mensagem é um exercício de auto-revelação. Em tais intervalos ouve-se menos. Mas o que se ouve costuma oferecer maior profundidade.

Wackypedia: léxico geral (1)

ASTECA. s. f. A manga do casaco de um batoteiro. [Wackypedia: contributos para um léxico alternativo]

domingo, 14 de julho de 2013

Duplo movimento

Com a sua «revolução coperniciana», Kant atribuiu ao sujeito um papel activo: ele «mexe-se» rumo ao objecto, impondo-lhe intuições amplas e estruturas firmes. A ideia revelar-se-ia mais fecunda se integrasse a leitura contrária: o objecto «em demanda» do sujeito. Não seria arremedo de visão ingénua, antes evocação de escuta sazonada. Para observar as formas de um penedo, convém que de algum modo nos movamos. Para olhar as feições que a nuvem toma, importa que saibamos estar quietos.

sábado, 13 de julho de 2013

Primeiros parágrafos…

…de um falhanço dos idos de Março

(É longo, desculpem lá ou passem à frente)


«Lembram-se do esqueleto que há uns seis meses alvoroçou a cidade? Era eu. Sei que é difícil de acreditar, até porque o esqueleto usava barba. Mas era eu. Hoje estou muito melhor, comi qualquer coisa entretanto e barbeei-me, voltei a usar roupa. Mas as fotos que viram nos jornais eram minhas. As tíbias, os fémures, os rádios, as falanges, todo o chocalhante conjunto era meu. Até o chapéu era meu. Sim, reconheço, podia ser de um cigano. Porém, era meu. Tomaram-me por um junkie, mas isso era uma acusação sem cabimento. Naquela altura eu já tinha deixado de me injectar, as agulhas partiam-se-me nos ossos. Bebia, de facto, mas não muito. Um pouco menos do que o Rasputine. Eu sei que ele era ligeiramente maior do que eu e isso faz diferença. Ok, umas três vezes maior do que eu. Sou um tipo baixo. Um baixote. Um minorca. E magro (agora já nem tanto). E louro. Se fosse moreno, teria sido mais difícil ser baixo. Era demasiado azar para se continuar vivo. Um gajo louro tem outro lustro. E depois há os olhos azuis. As mulheres quando olhavam para mim não viam um gajo baixo, estavam demasiado ocupadas a derreterem-se com o lourinho de olhos azuis. Quando finalmente se dispunham a medir-me a altura, faziam-no aos palmos e era raro passarem dos tomates. De resto, eu tinha ali uma surpresa para elas, uma a que se agarravam de mãos e dentes. Um tipo pode ser baixo e ter um pau comprido. As leis da física não o impedem. Fizeram-se testes. Eu fiz testes, na adolescência. No início, quando percebi que tinha uma coisa telescópica entre as pernas que em certas alturas não parava de crescer, assustei-me. Achei que aquilo me podia desequilibrar. Nunca a deixava crescer sem me encostar com uma mão a uma parede. Não é incomum que os putos o façam, embora nem todos limpem a parede depois. Mas fui ganhando confiança, como os funâmbulos se adaptam à vara que os equilibra no arame. Se pensam em termos gráficos, talvez estejam com dúvidas sobre a funcionalidade do sistema, mas a representação não esclarece tudo. Há os glúteos, que se desenvolvem com o crescimento. Imaginem isto: as mamalhudas não passam o tempo a cair de queixos, pois não? Bem, algumas passam, é verdade. O que quero dizer é que o nosso sistema muscular se adapta à carga com que tem de lidar. Não era um daqueles tipos com bíceps hiperdesenvolvidos porque não precisava assim muito dos braços. Isto pode deixar confuso um alferes, quando se vai para a tropa e se fracassa nas flexões na barra, mas não as mulheres. Pelo menos há vinte anos não. Entretanto tive de me adaptar, frequentar ginásios, arranjar-lhes uns bíceps que pudessem apalpar. O centro gravitacional de um corpo não muda com as épocas e os gostos, mas por vezes tem de se arranjar uns pontos de apoio para as mãos.»

Decerto alguns de vocês pensaram que é preciso um tipo descer muito na vida para se passear pelas ruas nu e com a barba por fazer, os ossos mal seguros por umas pelicas de frango depenado. Outros, pelo contrário, ficaram encantados com a publicidade que eu tive, aquilo era uma coisa que vocês podiam fazer. Afinal, toda a gente anda a tentar dar nas vistas, a desenvolver uma nova metafísica da existência: apareço, logo existo. Mas não escondo que tinha descido na vida. Tinha descido às profundezas do Inferno e não foi porque me enganasse no caminho quando tentava vernianamente descobrir o centro da Terra — não tenho a sorte nem o espírito aventureiro, ou a astúcia, de um Pedro Álvares Cabral. Se fui parar ao Inferno foi porque meti no GPS essas exactas coordenadas e obedeci com satisfação a cada directiva dada pela menina concupiscente do TomTom.

Tudo começou vinte anos antes, quando num dia solarengo de Fevereiro, desses em que nos atrevemos a mergulhar no oceano apesar do risco de síncope cardíaca, fui arrebanhado para a vida militar. Se havia alguém que não fora concebido para a tropa, era eu: o único desporto que tinha feito até à data era o sprint, quando tentava fugir do ;bullying na escola. Sobre a porta onde fazíamos fila para entrar, como estúpidos cordeiros voluntários para o sacrifício, havia uma sigla, «EPI», e só mais tarde soube que não significava «Escola Prática de Infantaria» mas sim «Entrada Para o Inferno». Claro que o Inferno ali, no átrio barroco do antigo convento, era ainda cálido, apenas chamuscava, era mais fanfarronice militar do que realidade. Tinha muito de Comboio Fantasma, onde umas figuras com insígnias e galões procuravam desempenhar o papel de almas penadas e monstros avulsos. Um tipo assustava-se e ria-se, tudo ao mesmo tempo. Os furriéis e os alferes logravam ser tão ridículos, nas suas fardas engomadas e nas suas botas luzidias, quanto certas representações naïves da morte com gadanhas ergonomicamente erradas.
A mim a tropa trazia-me entre o divertido e o entediado, mas frequentemente estava apenas irritadiço. O regulamento e os horários eram absurdos. Quando às seis da manhã acordava com o matraquear das giletes no mármore oxidado dos lavatórios dava graças aos céus por ter sido brindado com um rosto que naquela altura ainda era quase imberbe e onde a escassa penugem loura resultava invisível aos olhos de orangotango macho e míope dos graduados. Para eles, eu não tinha barba. Tinha bochechas como nádegas de gaja, onde apetecia assentar a mão, e julgavam que me incomodavam com isso. Eu ria-me como se eles tivessem contado uma anedota e eles diziam que não era para rir e davam-me um calduço. Parecia-me paga aceitável para o privilégio de me levantar seis dias por semana mais tarde do que os outros. Por vezes acordava antes do ritual da barba, porque havia uns imbecis cujo zelo pela pontualidade na parada os fazia levantar ainda mais cedo e, no seu nervosismo, não conseguiam abrir os cacifos metálicos sem parecer que os estavam a assaltar. Eles tinham a chave do seu próprio cacifo, mas abanavam-no e batiam-lhe como quem está a ser perseguido pelo Freddy Krueger e não consegue acertar com a chave na fechadura. Depois de finalmente o abrirem, não o sabiam fechar sem bater com as portas, metidos naquela sua cabeça e naquele seu mundinho onde só havia lugar para a obsessão com as horas e a obediência cega à hierarquia.
Depois de sermos admitidos naquele patético clube masculino, tinham-nos cortado ainda mais rente o cabelo e, num patamar de uma larga escadaria, fizemos nova fila para receber o fardamento, tudo nos previsíveis tons de verde azeitona, incluindo a roupa interior, as meias e os lenços de assoar (excepto o equipamento desportivo, que era de um branco pronto a aceitar as manchas de suor, e as botas, pretas como pneus novos de chaimite parafinados). Ao contrário da maioria das lojas, ali não se aceitavam trocas, pelo que éramos obrigados a lembrar na hora os nossos tamanhos ou a viver com o remorso de os ter esquecido — e com as peças demasiado apertadas ou demasiado largas. Mas ter boa memória não chegava: as botas que recebi eram do número certo, só que, numa prova de que o rigor militar é um mito, isso não significou que elas se ajustassem aos meus pés. Nas semanas seguintes, até ser autorizado a ir a casa, tive de usar em simultâneo todos os pares de meias que me calharam para conseguir caminhar sem deixar as botas para trás, e isso não favoreceu em nada a atmosfera empestada da caserna.
De resto, cedo comecei a desinteressar-me das rotinas militares. Havia um mínimo que eu cumpria, que era permanecer no quartel, fora disso não me preocupava demasiado o que indicava o menu do dia, não estava para me aborrecer com detalhes. Os militares eram, por exemplo, muito ligados à etiqueta, falsamente convencidos daquela treta de oficial & cavalheiro. Diziam que não se misturavam peças do uniforme número dois (o de saída) com o número três (o de trabalho ou operacional) e muito menos com o de ginástica. A continência só se fazia com a cabeça coberta. Não se ficava de cabeça coberta no refeitório. Nunca se pegava numa arma enquanto se envergava a alvura do equipamento de ginástica (como se assim vestidos nos tornássemos anjos, seres incompatíveis com a violência da G3). Enfim, um rol de limitações e exigências que poderia baralhar um tipo desatento como eu era. Como resultado disto, não foram raras as vezes em que apareci na parada, com o atraso do costume, embrulhado em branco-noiva quando todos estavam de verde-oliva ou vestido para ir às putas quando havia ordem de permanência de fim-de-semana.»

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Que maus costumes e que carrascos, afinal?

Ao contrário do que a maioria dos comentadores diz, ao recorrer a uma citação em que Simone de Beauvoir visava os Nazis, a Presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, não insultou o público que na galeria do hemiciclo exigia a demissão do governo — insultou, isso sim, o próprio governo.

Se não, vejamos: «Não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes», foi a citação feita. Ora, que mau costume recém-criado poderia Assunção Esteves assumir que se verificava naquela altura no parlamento? Claramente, o de o público na galeria se manifestar ruidosamente, perturbando os trabalhos. E o que justificava essa manifestação? A acção (des)governativa do governo de Pedro Passos Coelho (ou seja lá quem for que actualmente manda na chafarica).

Logo, a citação de Simone de Beauvoir só faz sentido se «maus costumes» = manifestação popular no parlamento e «nossos carrascos» (nazis) = Governo.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Palavras e silêncios

Terão sido estas as últimas palavras de Jane Austen: «I want nothing but death!» Por sua vez, Rousseau descreve-nos os meandros da agonia de certa mulher cujos derradeiros vocábulos, precedidos de sonoro traque, foram os seguintes: «Femme qui pète n’est pas morte.» Se houver ainda lucidez para compor a frase final da vida, uns decidem manter a solenidade, outros resolvem quebrar o protocolo. Só a morte persiste em não dizer qual dos dois exercícios mais lhe agrada.

Shoplifters Of The World Unite*

Conheci-o nos anos oitenta. Tinha o queixo afiado e insolente de Morrissey e dançava como ele. A teatralidade do cantor britânico era para a terra uma estranheza — vagamente sedutora para alguns, repulsiva ou embaraçosa para os outros. Para Pierre era uma segunda pele, mexia-se nela com o à-vontade do original que emulava e a quem servia de arauto nas berças. O facto de ter estado emigrado numa grande metrópole europeia e de ser, ao contrário dos demais, ainda que circunstancialmente, de origens urbanas, facilitava-lhe, claro, a apropriação do imaginário e do guarda-roupa pop. Parecia um excêntrico, mas era apenas alguém que adoptara um estilo. De uma sofisticação vulgar noutras paragens, assaz extravagante na província.
Na pista de dança dir-se-ia exibicionista, mas só porque o resto dos noctâmbulos dançávamos como tímidos e artríticos. Ele entregava-se à música com o mesmo ar compungido ou desesperado de Morrissey, agarrando os próprios ombros, colocando dramaticamente as costas da mão na testa, virando os olhos aos céus, vivendo emocionalmente o que ouvia nas colunas da discoteca, sobretudo se o que ouvia era The Smiths.
A amizade com os autóctones teria de ocorrer, porque Pierre, agora domiciliado na terra, era ali inusitado mas não tinha perfil de solitário. Contrastava nos grupos, mas acabaria por frequentar os mesmos sítios e seguir as rotinas clássicas do burgo. Trazia hábitos de consumo de marijuana cosmopolitas, e os posteriores problemas com as drogas que partilhou com parte da juventude indígena pareciam nele mais charmosos e românticos. Quando teve de trabalhar, já numa fase descendente, parecia uma estrela de TV a cumprir uma pena de serviço cívico. Era o único servente de trolha que chegava já de manhã com os jeans arregaçados, e usava o boné com a maior pala de todo o sector local da construção civil. Era dos poucos, na altura, que tomava banho e acertava o penteado entre o final do expediente e as primeiras cervejas da noite.
Algures na viragem do século perdi-lhe o rasto. Já só o via ocasionalmente, à boleia, diziam-me que a caminho do dealer. Chegaram-me rumores, que cobardemente não refutei, que o davam como internado em centros de desintoxicação — como tantos outros, nisto não seria original.
Quando o voltei a ver, de novo magro como o Morrissey de 82, mas agora talvez mais parecido com o Michael Stipe dos anos 2000, careca e consumido como ele, a primeira coisa que notei foi a franqueza do aperto de mão. Delicado mas envolvente. Falámos de música, claro, que ele amava com a mesma intensidade mas com um gosto mais ecléctico. Tinha um programa de rádio e uma mágoa por não ter dinheiro para ir ver todos os concertos de que gostava. Disse isto sem ressentimento, com uma certa humildade, sem o ar desafiante ou provocador que ser pós-punk nos oitenta lhe dava. (Não, não era humildade, era melancolia, realismo dorido.)
Não sei se a minha amizade com Pierre poderia ser agora mais intensa e franca do que há vinte e cinco anos, mas sei que a lembrança do nosso encontro acabou de me comover. Não confundam isto com condescendência ou piedade, nem ele precisa disso nem eu estou em posição de tais sentimentos, seria pretensioso e patético. É talvez um reconhecimento, o ver nele os meus próprios sonhos irrealizados. Ou uma premonição.


* The Smiths, single de 1987

Estou lixado

Depois de trabalharem e de cumprirem os seus ritos comunitários pós-prandiais, que nas noites quentes de Verão se alargam, as pessoas vão para casa. Eu vou para a varanda. As ondas de calor fazem de mim um sem-abrigo, porque tornam os compartimentos do T3 território inóspito para a humanidade. Leio e dormito na cadeira de plástico da varanda até ser demasiado doloroso segurar a cabeça e então, alta madrugada, arrasto-me para a cama, sabendo que vou suar as estopinhas cada hora de sono mal dormido.
Hoje, depois de há muito escancarar todos os vãos nas duas fachadas do prédio, a aproveitar como náufrago a brisa que se levantou, consegui finalmente, às quatro da manhã, baixar em dois graus a temperatura cá em casa (de 32 para 30). Significa que sentar-me ao computador é um exercício de masoquismo um pouco menos clamoroso.
Se tivesse um jardim com plantas arbustivas, poderia preencher estas madrugadas de canícula esculpindo ou fazendo a poda, como uma das vizinhas da rua de trás. Não é a primeira vez que ouço a velha senhora atarefar-se alta noite, mas geralmente apenas trata de despejar o lixo no contentor ao fundo da rua ou de arrumar o pátio a horas inesperadas. Ontem muniu-se de escadote e, em bata sobre camisa de dormir, tesourou durante hora e meia, varrendo de seguida minuciosamente o passeio. Não a podemos censurar: fazer aquele trabalho de dia teria sido suicídio e as insónias não têm de ser meros períodos de desespero, podem ser rentabilizadas.
É o que tenho tentado fazer, com menos sucesso do que a minha vizinha. Havia, teoricamente, uma certa correspondência entre o labor dela e o meu. Ambos decidíramos podar, ela os seus ciprestes, loureiros, carpa europeia ou o que quer que lhe nasceu no jardim, eu as provas do meu Os idiotas. Acontece que, ao contrário dela, eu não me consigo livrar dos ramos secos, desordenados, murchos, apodrecidos, porque nesse caso teria de me livrar de toda a obra.
O que escrevi atrás não é falsa modéstia, autodepreciação pedante. Explico-me melhor: eu estava apenas a tentar imaginar uma versão do romance que pudesse apresentar ao meu pai. E concluí que ela não existe. Se pusesse de lado a linguagem obscena, a sátira, a incompassiva crónica de costumes, ficaria talvez com uma novela amorosa ou psicológica nas mãos — negra, desesperançada, dispensável ou igualmente inapresentável. Estou lixado. Escrevi uma comédia, mas levá-la lá para casa será como contar uma anedota porca à mesa de jantar. Impensável.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Meta-aborrecimento

Ouço-o de uma septuagenária que nunca leu filósofos existencialistas nem poetas desesperados: «A certa altura, a gente até se aborrece de cá andar.» As derradeiras palavras de Winston Churchill terão exprimido idêntico teor: «Estou aborrecido com tudo.» Talvez o aborrecimento em causa, equivalendo ao tédio, represente um desconforto de natureza universal. Há vantagens em habituar-se a ele desde cedo. Poderá assim o indivíduo, mais tarde, aborrecer-se do próprio aborrecimento. Um exercício do género deve ser francamente redentor.

domingo, 7 de julho de 2013

Em Setembro teremos Os Idiotas
(não, não são os de todos os dias — ou serão?)

Eis uma ideia refrescante para o Verão (para o fim do Verão, pronto): em Setembro sairá Os Idiotas, primeiro romance do meu companheiro de blogue Rui Ângelo Araújo, numa edição d’O Lado Esquerdo Editora.

Em ano (e mês) de eleições autárquicas, convido-vos, não a conhecerem o Saavedra que há em vós — esperemos que não! —, mas, provável e desgraçadamente, o Saavedra que há um pouco por todo o nosso Bồ Đào Nha.


Site do livro: www.osidiotas.pt
Página no Facebook: www.facebook.com/osidiotaslivro

sábado, 6 de julho de 2013

A origem do conflito

Aos defensores da teoria da reencarnação coloca-se o problema de saber em que momento a velha alma se introduz em novo corpo. Três hipóteses: por altura do acto fecundante, ao longo da gestação ou pouco antes do nascimento. Embora metafisicamente implausível, a terceira conjectura é, psicologicamente, a mais reveladora. Com efeito, ela fornece uma explicação radical para os nossos desajustes e conflitos internos: o facto de a alma dar entrada num corpo que se encontra de saída.

A situação política em Portugal explicada com um Photoshop mal-amanhado

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Brindes e vantagens

Um pouco acima de duzentos euros, duas vezes atestado o depósito da viatura, acumulam-se, no cartão, cento e cinquenta pontos. Dão direito a brinde: um pacote de pipocas. Consulta-se o resto do catálogo. Se se persistir até aos quatro mil pontos (seis mil euros), o benefício será «uma noite de hotel». Atingidos os sessenta mil pontos (cerca de noventa mil euros!), há-de ter-se nas mãos um iPhone. A generosidade é uma obstinada virtude das estações de serviço.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Olhar fixamente

«Nem o Sol nem a morte se podem olhar fixamente», assegura La Rochefoucauld. Impõem-se dois eventuais contra-exemplos. Terão sido estas as últimas palavras de Goethe: «Luz, mais luz!» Talvez ele estivesse a olhar fixamente uma espécie de sol. Nos derradeiros instantes, Fernando Pessoa conseguiria ser menos poético: «Dá-me os óculos…» Talvez ele quisesse olhar fixamente a própria morte. Mas convém não omitir, em nome da transparência, que o primeiro era um romântico e o segundo um fingidor.

terça-feira, 2 de julho de 2013

ATENÇÃO! Queda de Governo

Sinal de alerta (perigo): derrocada de homenzinhos

Novo sinal de trânsito, a afixar no Largo de São Bento.

Balas sobre São Bento

Vítor Gaspar foi-se embora e alguns analistas e comentadores avisam-nos que ainda iremos suspirar pelos tempos em que ele mandava nas Finanças. Para além do proverbial «Depois de nós virá quem bom de nós fará...» (ou, em versão mais vernacular, «Há muita mais merda de onde esta veio...»), justifica a mau agoiro a percepção de que Vítor Gaspar era um ministro com prestígio “lá fora”: não que o homem tivesse mostrado ser minimamente competente (viu-se que não), mas os “Mercados” gostavam de ter um dos deles nas rédeas dos trocos nacionais, e ainda vamos sentir falta disso.

Sabemos que as coisas estão mal quando a lógica governamental obedece ao argumento de um filme de Woody Allen, mas sem piada nem talento de representação.

Em Balas sobre a Broadway, um encenador inexperiente de cara laroca contrata uma “actriz” sem talento e mimada, cuja única mais-valia é ser amante do gangster manda-chuva que se disponibilizou a financiar o espectáculo. Para nossa desgraça, no casting governativo a que tivemos direito falta quem represente o papel de Cheech, o guarda-costas da amante do patrão, cujo (até então desconhecido) talento natural para o show business vai desencantando as soluções que salvam a peça da monumental inépcia da actriz e do encenador. De entre os gangsters que infestam a política nacional, onde estará o nosso Cheech?!

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O tesouro

Convencera-se, na infância, de que era um tesouro. Haveria de manter tal crença a vida inteira. Ela traduzia-se na sua resistência a tomar opções que envolvessem algum risco ou lhe franqueassem o íntimo. «Deve resguardar-se o que é precioso», pensava. Aos poucos, sonhos e devaneios impuseram-se-lhe como única dimensão tolerável da realidade. Após a morte, converter-se-ia em tesouro definitivo. E, à semelhança do que acontece à maioria dos tesouros, ninguém hoje sabe onde ele se encontra enterrado.