domingo, 13 de abril de 2014

Ai que saudades da «cultura de excelência» do pré-25 de Abril!

Leio no Público que Durão Barroso veio lembrar-nos da «cultura de excelência» promovida nas escolas antes do 25 de Abril.

Senhor Dr. Durão Barroso, não era cultura de «excelência» — era a cultura de «Sua Excelência», era a cultura da exclusão.
A escola pública no Estado Novo não procurava detectar o talento onde quer que ele existisse, levando-o à excelência. A escola pública do Estado Novo procurava perpetuar o statu quo: garantir que os pobres se mantinham calados e sossegados — e pobres, como Deus quis.

A educação, para lá dos quatro anos da Primária (que a falta de fiscalização não garantia, sequer), estava fundamentalmente reservada às classes média e superiores — e nesses tempos a imensa maioria da população não alcançava, nem de longe, o nível da classe média.
Não é que a lei proibisse ipsis verbis o acesso das classes populares a educação suplementar, mas a prática do regime garantia que assim fosse, para todos os efeitos. As poucas famílias de classe mais baixa que conseguiam providenciar uma educação liceal a um dos seus filhos faziam-no com grande esforço, à custa de muito sacrifício: em geral, apenas o filho mais novo, na melhor das hipóteses, teria a oportunidade de prosseguir os estudos, pois era preciso que todos os irmãos e irmãs mais velhos trabalhassem (como moços de recados e marçanos, como criadas de servir e ajudantes de costureira) para que houvesse dinheiro à justa para suportar as despesas dessa escola promotora de «cultura de excelência».

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O meu pai foi um excelente aluno. Poucos meses depois de iniciar a 1.ª Classe, o professor percebeu que ele não só sabia toda a matéria desse ano (já dera duas voltas ao livro), como sabia de facto mais do que os alunos da 2.ª Classe. Homem sábio, passou-o logo para essa turma mais avançada, razão pela qual o meu pai concluiu a Primária em apenas três anos.
Como na altura a escola pública, como é sabido, promovia uma «cultura de excelência», a sua condição social ditaria que não prosseguisse os estudos. O meu avô precisava de um par de braços extra a trabalhar na sua pequena carpintaria e no meio hectare de terreno arrendado que ajudava no sustento das seis bocas da família.

Mais tarde, já com 18 ou 19 anos, o meu pai resolveu tentar fazer, como autoproposto, os exames do 2.º ano do curso do Liceu. Preparou-se autonomamente o melhor que pôde, chegando a pagar, com dinheiro penosamente ganho, umas explicações particulares de Francês.
Quando se tentou inscrever nas provas, foi informado que não bastava pagar a já de si pesada taxa de inscrição: precisava de um termo de responsabilidade.

— Termo de responsabilidade? — perguntou o meu pai.
— Alguém que se responsabilize por si, que afiance que está preparado para realizar os exames. Quem o assina tem de ser um familiar seu com escolaridade superior à sua, ou um licenciado.
— Mas responsabilizar-se por quê? Sou eu que vou pagar a inscrição. Se reprovar no exame, quem é que prejudico para além de mim? Para quê um «responsável»?

Era a «cultura da excelência» a funcionar. O meu pai podia discordar o quanto quisesse, as regras eram como eram. (Ai as saudades...)
Na família, mesmo alargada, não havia ninguém com escolaridade superior à dele. Quanto a um licenciado, não sei se o meu pai não encontrou um que se «responsabilizasse» por ele, ou se recusou a humilhação de procurar um. O resultado foi que não pôde realizar os exames, ficando-se pela escolaridade primária. Tudo em nome da «cultura de excelência», pois claro.

2 comentários:

  1. Saudades da humilhação dos mais desfavorecidos à custa de parangonas que afirmavam haver alguns esforçados pobres, limpos e trabalhadores, cujo filho (pasme-se)conseguia ombrear com os filhos dos doutores!!
    Saudades das aulas debitadas pelos cadernos eternamente iguais!
    Saudades das reguadas, dos puxões de orelhas, de estar de joelhos com as mãos a servir de poiso...
    Saudades da total subserviência medrosa (ia escrevendo merdosa)...
    Saudades, agora a sério, de não ser matraqueada com as palavras "excelência" e "qualidade" a toda a hora!

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  2. Era mesmo assim a «cultura de excelência» do cherne podre. Eu assisti a tudo isso que conta sobre o seu pai. E já como professor(inh)a, preparei muitos alunos adultos para se autoproporem aos exames do 2º, do 5º e do 7º anos do liceu... Grande consideração que tinha por eles e pelo esforço que faziam...

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