O mês de Julho de 1976 arrastava-se e estávamos aborrecidos. Talvez fruto da relativa frescura desse Verão, se comparado com o do ano anterior. Ou talvez devido à imensidão das férias: com seis anos, a minha irmã terminara o infantário e entraria na escola primária no Outubro que tardava; quanto a mim, com quatro anos, e ao meu primo, com vinte e um meses, as nossas curtas vidas eram umas férias contínuas. Fosse o que fosse, estávamos aborrecidos.
A RTP deveria andar a transmitir por esses dias algumas provas dos Jogos Olímpicos de Montreal, pois o certo é que um de nós se lembrou de fazermos as nossas próprias Olimpíadas. O “estádio” era o jardim das traseiras da nossa casa; as provas, corrida à volta dos canteiros, salto em comprimento, lançamento de pedras...
Como éramos só três, todos tinham lugar no pódio: o primeiro equilibrava-se num banco alto; à sua direita, num banco mais baixo, perfilava-se o segundo; o terceiro resignava-se ao piso térreo à esquerda do vencedor. (Talvez houvesse algum sucedâneo de medalhas, mas não me lembro.) Cantarolávamos o hino nacional, com a gravidade que convém a atletas medalhados, e passávamos à prova seguinte.
Dada a pequena-grande discrepância de idades, não demorou muito a detectar-se uma regularidade nos resultados: a atribuição das “medalhas” de ouro e de prata variava, mas, com os cueiros ainda a pesarem-lhe nas pernitas gordas, o bronze acabava sempre no peito do meu primo Jorge Miguel.
O Jorge Miguel era um desses fenómenos do último quartel do século XX português: sem nunca se ter ido embora, era um “Retornado”, tendo vindo da sua Angola natal em Janeiro de 1975. (Era também o único que não sabia que em Angola vivera num bairro de Luanda, e que chegara a Portugal com apenas três meses de idade, pelo que, para grande divertimento nosso, fantasiaria durante anos, longa e detalhadamente, sobre as suas supostas vívidas memórias de piqueniques no mato, com a imprescindível aparição de macacos, leões e elefantes...)
Como a família ainda não tinha casa própria, o meu primo e os pais iam vivendo na casa dos meus avós paternos, situada, tal como a nossa, no Pátio das Cantigas. Com eles vivia ainda uma tia solteira, a Tia Meá, também regressada de Angola.
Mal habituado pelo seu privilégio de “duas mães” (a Avó Teresa era mais igualitária na distribuição dos afectos), enquanto eu e os meus irmãos nos víamos obrigados a partilhar uma por três, aquela série de derrotas atléticas era mais do que o Jorge Miguel podia suportar: veio a birra, um literal se-não-me-deixam-ganhar-então-não-brinco.
A princípio resistimos a essa chantagem antidesportiva, mas acabámos por ceder e a prova seguinte foi uma retumbante vitória do meu primo: eu abrandara descaradamente o passo, dando-lhe a oportunidade de me ultrapassar no canteiro dos jarros. Foi um regalo vê-lo inchado de orgulho enquanto subia a custo para o banco mais alto, aparentemente alheio ao facto de a vitória lhe ter vindo por via da birra e não do mérito de velocista.
Porque, se é certo que não recordo se houve conspiração prévia ou não, também não é menos certo que a nossa vingança já estava a sair do forno: sobe o Jorge Miguel ao mais alto do pódio, tomamos, eu e a Teresa, as duas posições subalternas; e então, como um balde de água fria, cantamos (eu e ela) o hino do vencedor: «A-bunga-bu, a-bunga-bu...»
O Jorge Miguel explode num berreiro. Nós, curiais: «Então, tu és preto, vieste de Angola...»
«Não, eu sou português!», gritava o nosso primo, mais irritado do que nunca.
A ironia, claro, é que o Jorge Miguel era o único loiro de entre nós, com uma pele rosadinha que, nos polaroids desbotados da década de 70, lhe dá um ar de leitãozinho rechonchudo. Mas esse pormenor não refreava a determinação, minha e da minha irmã, de lhe darmos uma lição de desportivismo — ou, em abono da verdade, pormos em prática essa crueldade infantil que não precisa de ser ensinada.
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