(parte 2)
Talvez por sermos crianças, não nos resignávamos à passada lenta do devir histórico, razão pela qual, de facto, teríamos num mesmo dia os nossos 25 de Abril, 11 de Março e Verão Quente: seria derrube da ditadura, instituição de novo regime e apropriação dos bens da classe dominante, tudo de uma assentada. Traduzindo: o plano era, aproveitando a ausência do Carlitos, infiltrarmo-nos na sede, apoderarmo-nos dos “tesouros” do Clube e transferirmos tudo para as traseiras da segunda tasca disponível (a do Sílvio), onde fundaríamos o Novo Clube.
As operações decorreram inicialmente conforme previsto: entrávamos na tasca do Carlitos, dávamos a desculpa de que íamos à casa-de-banho situada ao lado da sede e saíamos de novo, trazendo um qualquer item escondido dentro das calças. Mas cedo percebemos que a tática tinha pernas curtas: após meia-dúzia de entradas e saídas, o pai do Carlitos poderia ficar desconfiado com tanta urgência urinária.
Uma incursão à despensa da minha avó trouxe-nos as armas da nossa vitória: uma corda de três ou quatro metros e um balde.
Imbuídos de nova esperança e determinação, retomámos as operações. Eu e o Nuno gastámos pela derradeira vez a desculpa do chichi e voltámos à sede. Lá, abrimos uma das janelas que deitavam para o Pátio. Após algumas tentativas falhadas (a janela ficava à altura de um primeiro andar não muito alto), conseguimos agarrar a corda que o Sílvio nos lançava. Com a outra ponta atada ao balde, içámo-lo. E foi o fartar-vilanagem: em poucas levas esvaziámos a sede de todas as fisgas e grampos, todos os arcos e flechas, todos os cromos de futebol e do Sandokan, todas as caricas e demais parafernália, incluindo — prémio supremo — um Franjinhas de gesso pintado, já meio esbotenado, que ocupava lugar de honra no espólio do Clube. (Em abono da verdade, o Franjinhas era do Carlitos, mas tal era a crueza da nossa revolução.)
Finda a operação, refugiámo-nos nas traseiras da tasca do Sílvio, onde esperámos na semiobscuridade do esconso anexo, que, a meio de uma remodelação, pouco espaço livre tinha entre sacos de cimento, tijolos e montes de areia.
Uma ou duas horas depois, o Carlitos entrava, de rabinho entre as pernas, na nossa nova sede. Chegado da aldeia e deparando-se com o esvaziamento do Clube e a ausência de três de nós, tinha interrogado o Jorge Miguel, que lhe contou do nosso 25 de Abril. E agora, eis aqui o nosso ex-ditador, não em fuga para o Brasil, mas humilde, a admitir que tinha errado, mas que tudo iria mudar: a partir daquele dia, haveria acesso igualitário ao uso das fisgas e igual empenho na apanha dos grampos.
Talvez devido à precariedade da nossa nova sede, acedemos aos apelos do Carlitos, devolvendo tudo à origem: esse dia memorável na História do Pátio acumulava, assim, mais um marco: o da reversão do processo de expropriação e colectivização da propriedade privada.
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