Aí por 1978, eu e mais uns vizinhos criámos o nosso primeiro clube, que nunca teve outro nome que não «O Clube». Nessa altura eu ainda não sabia ler, pelo que a motivação não me chegou por via dos livros d’Os Cinco e d’Os Sete, que viria a consumir fanaticamente. O mais certo é ter sido pura imitação do meu irmão, que, com alguns outros miúdos mais velhos do Pátio, tinha também um clube, ao qual «os putos» não tinham acesso.
O nosso Clube teve, nos anos que durou, seis membros: eu e a minha irmã, o nosso primo Jorge Miguel, o Nuno, o Sílvio e finalmente o Carlitos, o nosso chefe.
O Carlitos era o mais velho do grupo. De facto, em termos etários, aproximava-se mais do meu irmão do que dos restantes de nós, mas a sua imaturidade (e a conhecida crueldade infantil) fazia com que fosse algo ostracizado pelos miúdos mais velhos. Assim, com nove-dez anos, convivia fundamentalmente connosco, cujas idades iam dos quatro aos oito — uma maioridade que lhe garantia o estatuto.
O direito à chefia era reforçado pelo facto de a ele devermos o Clube ter uma sede digna desse nome: uma sala nas traseiras da tasca do pai dele, que em dias de mercado se transformava no “consultório” de uma endireita; fora desse período, a sala estava por nossa conta.
O Clube desenvolvia um intenso programa de actividades: fazíamos fisgas, arcos e flechas, brincávamos aos índios e aos lusitanos, escrevíamos mensagens cifradas (isso mais tarde, quando já todos sabíamos ler e escrever) — enfim, fazíamos as coisas normais de miúdos daquela idade. Ou nem tanto: exercendo a sua autoridade de subchefe, patente assegurada pela idade e pelo privilégio de ser a única menina do grupo, a minha irmã conseguira incluir no rol de actividades um período em que ela tentava ensinar-nos os adjectivos e os verbos, a divisão longa e as regras de pontuação — que ela própria tinha aprendido apenas uns dias antes. (Sim, adivinharam: a minha irmã estava fadada a tornar-se professora.)
A certa altura, por iniciativa do Carlitos, as reuniões do Clube assumiram uma solenidade e um ritual — e uma estratificação hierárquica — impressionantes: o chefe sentava-se ao fundo, de costas para a parede, numa das duas únicas cadeiras disponíveis; os lugares à sua esquerda e à sua direita eram ocupados por mim e pelo Nuno, sentados em grades de cerveja vazias; em frente ao Carlitos, na segunda cadeira, sentava-se a subchefe; e de um lado e do outro da Teresa, de pé e em pose de guarda-de-honra, ficavam o Sílvio e o Jorge Miguel, os mais novitos. Tamanha entronização do chefe não causou a melhor impressão em alguns de nós.
Mas foi por causa das fisgas que a Revolução chegou ao Clube e ao Pátio das Cantigas.
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