Nos tempos conturbados em que vivemos, com muita histeria, muito medo, muita ignorância e muito maquiavelismo, as redes sociais pululam de informação falsa e enganosa.
O fim do Verão e o Outono deste ano foram particularmente férteis em notícias falsas que procuram denegrir os refugiados sírios: com 5% de Photoshop, 50% de puras mentiras e 0% de contexto, eis como manifestações violentas de muçulmanos radicais alemães em 2011 são apresentadas como manifestações pró-Daesh de refugiados sírios na Alemanha em 2015 ou como um ex-combatente anti-Daesh refugiado na Europa foi apresentado como um combatente do Daesh infiltrado na Europa. E estes são só dois exemplos, de entre dezenas possíveis. (Eu mesmo ilustrei a facilidade com que se poderia “transformar” um heróico voluntário português que lutou ao lados dos Curdos do YPG num membro da horda assassina do pseudo-Califa.)
Mas, nem só de desinformação islamófoba, anti-refugiados e anti-muçulmanos, se faz o nosso tempo. Tão ou mais frequente é a desinformação islamófila. E se aquela deve muito à histeria e ao medo, esta deve não menos a uma certa boa-vontadezinha “flower power” ou a um wishful thinking de Padre Américo do like-and-share. E ambas — desinformação islamófoba e islamófila — são alimentadas pela ignorância de muitos e o maquiavelismo de alguns (porque nem todos podem alegar desconhecimento).
Talvez o exemplo mais claro desta desinformação islamófila seja a tentativa desesperada de apresentar o Islão como uma «religião de paz», quando, como deveria ser notório, o Islão foi, logo desde o seu fundador, uma religião violenta: foi o Islão que inventou o conceito de «Guerra Santa»; as Cruzadas, que os muçulmanos não se cansam de apresentar como raiz de todo o seu ressentimento, foram simplesmente o plágio tardio com que os cristãos responderam.
O expoente máximo desse travestismo pacifista é a suposta citação de um famoso versículo corânico, o 32.º da 5.ª Sura:
Se alguém matar uma pessoa, é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade.
Digo «suposta citação», porque uma versão um pouco mais honesta seria:
[...] se alguém matar uma pessoa [...] é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]
Notaram a diferença?
Três reticências, apenas — mas, parafraseando Arquimedes, dêem-me reticências suficientes e ponho Hitler a elogiar os Judeus.
Porque a verdade é que o versículo é sempre “citado” com grandes — e importantíssimas — omissões. Os apologistas islâmicos queixam-se frequentemente de que as passagens violentas do Corão (esgrimidas pelos seus opositores) são citadas removendo o contexto e deturpando, assim, a mensagem. De facto, a apologia da violência está frequentemente lá, sem ou com contexto; já o pacifismo é que só se consegue fabricar à custa de muito corta-e-cose.
Invocar o versículo 32 da Sura 5 para demonstrar que o Islão é uma religião de paz (ou «a religião da paz», como dizem alguns muçulmanos mais enfáticos) é o mesmo que ilustrar o génio literário de José Saramago (e o seu pacifismo, o seu patriotismo e a sua arte poética) com “citações” como «amai-vos uns aos outros», «As armas e os barões assinalados» ou «o poeta é um fingidor».
José Saramago escreveu tais coisas? Sim: estão, respectivamente, nas páginas 43, 68 e 114 de O Ano da Morte de Ricardo Reis, edição de 1995. A questão, claro, é que, apesar de constarem num livro de Saramago, todos (espero) sabemos que ele não é o autor das passagens em causa.
Comecemos por desmontar a tese do suposto pacifismo do versículo corânico.
Sendo menos pródigo em reticências, uma citação mais completa seria:
[...] se alguém matar uma pessoa — que não seja em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — é como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, é como se ele salvasse toda a humanidade. [...]
Esfumou-se o pacifismo: não só o preceito prevê a possibilidade de se matar alguém como sanção pelo crime de homicídio, como a aplicação da pena de morte é alargada ao convenientemente vago crime de «espalhar a corrupção pela terra». Em que consiste tal ofensa capital? Dependendo do nosso imã, do nosso ciber-guru, do nosso autoproclamado Califa ou do nosso ressentimento doentio, pode ser qualquer coisa — desde desrespeitar o Profeta, abandonar o Islão ou professar outra religião ou nenhuma, passando por cometer adultério ou ser vítima de violação, até jantar no Le Petit Cambodge, assistir a um concerto no Bataclan, passar em frente ao Estádio de França, ir ao mercado em Beirute, dormir num hotel em Bamako: viver, existir.
Mas a contrafacção de um pacifismo corânico que não está lá vai mais longe: não só o preceito não é tão pacífico como no-lo querem vender, como nem sequer é certo que, segundo o Corão, ele se aplique aos muçulmanos.
Porque uma citação ainda mais completa e correcta do versículo seria:
Por causa disso, ordenei aos Filhos de Israel que se alguém matasse uma pessoa — que não fosse em retaliação de homicídio, ou por espalhar a corrupção pela terra — seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvasse uma vida, seria como se ele salvasse toda a humanidade. [...]
Exactamente: este preceito teria sido ordenado, no passado, não aos muçulmanos (que no Corão são sempre designados «Crentes»), mas aos «Filhos de Israel», isto é aos Judeus.
De facto, a citação supostamente pacifista não é um original do Corão, embora seja citada actualmente como tal: é uma paráfrase de uma passagem do Talmude (concretamente, do Livro do Sinédrio, 37a), colectânea de comentários rabínicos da tradição judaica. (E o autor do Corão enganou-se: a frase consta do Talmude, não da Tora — a Lei de Moisés — ou sequer de outra parte da Bíblia judaica, pelo que é errado dizer que tal foi ordenado por Deus.)
Pior: a subtil diferença nos tempos verbais («matasse», «seria», «salvasse», e não «matar», «é», «salvar») reforça ainda mais a ideia de que, não só o preceito teria sido transmitido aos Judeus (embora eles nem sempre o cumprissem, falha referida no resto do versículo, que não transcrevi), como, agora que Maomé veio pôr os pontos nos is para os «Crentes» (muçulmanos), tal preceito foi ultrapassado, não se aplicando a eles.
Mas então, que preceito se aplica aos muçulmanos, aos verdadeiros crentes? Não é preciso procurar longe, noutras partes do Corão, caindo uma vez mais no problema do contexto: o versículo seguinte (5:33) dá a resposta imediata:
De facto, a pena para aqueles que lutam contra Alá e o Seu Profeta e tudo fazem para espalhar a corrupção pela terra é não outra do que eles serem abatidos [como o gado, isto é, degolados] ou crucificados, ou as suas mãos e pés serem cortados de lados opostos, ou eles serem expulsos da terra. Tal é a sua desgraça neste mundo; e no outro mundo espera-os um grande tormento.
Suscita-vos algumas imagens recentes?...
Que concluir, então, de tudo isto?
Que, se a ignorância grassa no vulgo, não é crível que tal desconhecimento da totalidade do texto e do seu contexto se verifique nos vários clérigos muçulmanos que, ofendidos na sua dignidade (uma especialidade muçulmana), sacam deste “trunfo” em defesa da sua religião.
Claramente, o que lhes falta em humor e em “poder de encaixe” sobra-lhes em sofisticada ironia: o expoente máximo do suposto «pacifismo islâmico» é um grande saco cheio de vento — a citação incompleta da paráfrase desinformada de um texto judaico. Allahu asghar.